Culpa Assumida

de Ricardo Alfaia

 

A pá feriu o chão húmido com o primeiro golpe. Um som deslizante de metal a possuir terra entrou pela noite, enquanto o chuvisco molhava um rosto agreste. A seguir, ouviu-se uma bota enlameada a carregar a alfaia e o rasgar do solo. Por fim, uma chuva de terra sobre terra. Ao lado, uma amendoeira, já habituada a estas visitas, permanecia serena.

A pá e o homem trabalhavam em sintonia. Os sons repetiram-se, num turno meditativo, até um ruído diferente, oco, se juntar à composição. Eis a madeira.

O homem da pá limpou o suor, que lhe ardia nos olhos, com as costas da mão e continuou, sem mais descanso, até abrir a tampa do caixão. Depois, subiu à berma da cova e, de uma bolsa de linho preta, tirou um saco de plástico transparente, manchado de sangue, onde se encontravam duas mãos e dois pés. Retirou-os com cuidado e retornou ao caixão, onde os deitou ao lado de outros pés e outras mãos. Uns já só ossos, outros com carne ainda agarrada, podre, a desfazer-se, a alimentar vermes e a pedir descanso.

Depois, esperou.

Não conhecia o momento, mas, quando a lua cheia decidia, a transformação começava. Lançou os braços e um grito aos céus; os olhos engoliram a luz da noite; desmaiou.

Exteriormente, nada se alterou, mas os órgãos e a alma rejuvenesceram. A recompensa pelas dádivas oferecidas às trevas era a de mais trinta dias de vida.

Tão difícil processo, tão fáceis regras: extremidades oriundas de vivos forçados a sobreviver às mutilações. A dádiva exigida era o sofrimento. As carnes eram a prova.

Quando acordou, ergueu-se lentamente. Notou a nova vida a ocupar e a preencher as veias, os músculos e a pele. Fechou o caixão e a cova. Ao acabar, pouco antes da alvorada, sentiu-se exausto e culpado.

O pacto que fez era maldição e bênção num só. O tempo que lhe era oferecido usava-o para fazer o bem. Tornou-se cirurgião porque queria salvar vidas. Tornou-se um demónio para não parar de o fazer. Não se achava má pessoa ou um ser cruel. Só não queria morrer. Não podia morrer.

 

SOBRE O AUTOR

Ricardo Alfaia

1969 (Maternidade Alfredo da Costa, Lisboa) > Évora > Lisboa > Évora > Nuremberga > Ingolstadt > Weichering > Santa Cruz.

Empregado de mesa > cozinheiro > condutor > barman > casamento > assistente de fotografia publicitária > filho > fotógrafo > gerente de restauração > designer gráfico > filho > filha > web designer > autor > cofundador da Fábrica do Terror.

 

«O Homem planeia, e Deus ri.»