Cumprir a Tradição

de Joana Santos

Era o dia de Ana tomar conta do bebé dos vizinhos do lado e vinha mesmo a calhar. Estava a poucos dias de celebrar o vigésimo aniversário, o primeiro que celebraria sozinha, depois da morte do pai. A mãe morrera inesperadamente quando tinha sete anos, evento que, segundo o pai, poderia ter sido evitado se a mãe tivesse cumprido as suas instruções à risca. Distraída como era, o mais provável era ter-se esquecido de bater três vezes na madeira para evitar o mau agouro, ou mesmo ter passado por baixo de um escadote a caminho do trabalho. Eram as únicas explicações que encontrava para o atropelamento.

Ana cresceu a aprender as superstições do pai, mas, desde a morte da mãe, estes hábitos tinham ficado mais acentuados. Tornou-se tradição o pai oferecer-lhe um amuleto nos anos, com um característico cheiro penetrante, que passou a ser uma das memórias que guardava dos seus aniversários. Segundo ele, o amuleto deveria acompanhá-la em todas as ocasiões, para evitar um azar semelhante ao da mãe.

Com os vizinhos fora de casa, entretidos na sua sessão de cinema, Ana tinha o caminho livre para renovar o amuleto. Era o primeiro ano em que o faria sozinha, sem ajuda do pai.

Observou o bebé a dormir, alheio à importância do que estava prestes a acontecer. Enquanto lhe atava os braços e a perna direita às grades do berço, a criança começou a despertar. Sozinha, cortar o pequeno pé revelou-se mais difícil do que esperava. Faltavam-lhe a força e a experiência do pai. Os berros eram o que menos gostava neste ritual, mas, tal como nos outros anos, iam ficando cada vez mais espaçados, até já não se ouvirem.

Pegou no frasco de vidro que trazia na mochila, retirou do formol líquido o pé que lhe tinha sido oferecido no aniversário anterior e substituiu-o pelo novo. Não tinha planeado o que dizer aos vizinhos quando regressassem, mas, com o seu novo amuleto, tinha a certeza de que tudo ia correr bem.

 

 

SOBRE A AUTORA

Joana Santos

Joana Santos nasceu em 1993, em Santarém. Poucos anos depois, leu a coleção Os Meus Monstros e, desde então, sonha ter um grupo de amigos composto por um vampiro, um lobisomem e uma múmia. Passou a adolescência em Milão, onde se tornou especialista em comer massa. É fã de filmes de terror e aventurou-se na escrita do género através do curso Escrever Terror, oferecido pelos pais como prenda de aniversário.