Desfechos

de Liliana Duarte Pereira

 

Mais um dia. Raramente igual ao anterior, talvez pela tamanha variedade de serviços aplicados. A antecipação fazia com que Florinda conseguisse ouvir as chaves a dançarem escada acima. Assim que arranhavam a fechadura, estremecia como se tivesse sido surpreendida. Da porta de entrada, ouvia a miúda a esfregar as mãos. 

O entusiasmo era grande, fosse o primeiro ou o último trabalho da escala. Chegava ao quarto e arrastava os cortinados num puxão único. A claridade feria os olhos de Florinda, e essa era a dor mais confortável. 

Da boca da miúda, saíam poucas palavras — e nunca afáveis. Pegava na folha plastificada pousada sobre a mesa de cabeceira e apontava o terminal de registo na direcção do código de barras previamente seleccionado. A luz vermelha mudava para verde, ao mesmo tempo que soava um apito idêntico ao de uma compra concluída. A título informativo, comunicou: «hoje, o seu sobrinho escolheu a opção de fractura da órbita». 

Não era dos piores dias, ninguém morre por ter os ossos que rodeiam os olhos partidos. Um sofrimento novo que serviria para a distrair do ardor dos dedos queimados ontem.

Era importante que ficasse quieta, se reagisse podia levar uma pancada mal dada e adiantar o processo. A colaboração não era mais do que esperança de que o sistema se alterasse. Os tradicionais cuidados de higiene, tratamento de roupa e da casa, ou a entrega de refeições ao domicílio tinham deixado de existir. A rotatividade das equipas tinha também sido eliminada. Descuidar é mais fácil, não exige brio nem que sejam seguidos procedimentos. Ninguém precisa de formação para aplicar sovas consecutivas, mergulhar corpos em água gelada até engelhar a pele, dar fome a quem depende de que a comida lhe chegue. 

Podia ser só uma medida de controlo do envelhecimento, porque todos têm velhos indesejados e limitar-lhes a existência era consensual. Bastava uma intervenção rápida, limpa e indolor, mas há sempre quem não prescinda de lhes bater, para amaciar a carne.

 

 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE A AUTORA

Liliana Duarte Pereira

Liliana Duarte Pereira, nascida a 30 de junho de 1986, é licenciada em Política Social através do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Sempre quis preparar os mortos para os seus funerais, mas não vingou. Tem fobia a pessoas falecidas e a portas entreabertas. Gosta de animais, de fazer doces, de rir de coisas mórbidas e de escrever.

Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Rua Bruxedo (2022) e Sangue (2022).

Venceu o Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto (2022) com «O Manicómio das Mães», da antologia Sangue Novo.

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