Dona Eugénia

de Sandra Henriques

 

Todos os dias às sete da manhã, Dona Eugénia chegava ao café e pedia para se sentar na mesa do costume, virada para o balcão e de costas para a porta. O cabelo quase branco, apanhado num carrapito empoleirado no cimo da cabeça como quem tinha acabado de sair do cabeleireiro, e o fato saia-casaco com um padrão pied-de-poule miudinho preto e branco davam-lhe um ar indiscutivelmente clássico. Só destoavam a sombra azul-metálica com que pintava os olhos vivaços, o batom vermelho-ferrugem a sair do risco e a camada de base dois tons acima da sua cor de pele. De resto, estava sempre impecável.

Fazia sinal com a cabeça a pedir o pequeno-almoço de sempre: um chá de camomila («servido em bule, não na chávena»), duas torradas («com pouca manteiga, só assim de leve num dos lados do pão») e o jornal diário («sem a secção de desporto que não m’interesso por bola»). Entre uma dentada na torrada e um gole no chá, acendia o primeiro cigarro, a que a empregada de mesa acorria rapidamente com um dos cinzeiros pesados de vidro, decorados com o logotipo da cerveja da casa. Dona Eugénia, de SG Gigante equilibrado entre as pontas dos dedos, acenava lentamente de cada vez que virava a página do jornal. Não acho que concordasse com todas as notícias; aquele passar de folhas mais não era do que outro elemento da sua rotina diária. Lia, estava lido.

Os meus olhos seguiam a ponta de cinza a crescer, suspensa, e, quando sentia o cigarro a desequilibrar-se entre as pontas dos dedos, Dona Eugénia dava um longo trago para de seguida esborrachar a beata no meio do cinzeiro. O tabaco tinha-lhe curtido a pele, mas não lhe amarelara os dedos, reparava eu.

Perdia-me naquele ritual da minha companheira de manhãs de café, de tal forma que sabia precisamente qual o momento em que tinha de desviar o olhar e dar-lhe alguma privacidade. Depois do chá, depois das torradas, depois de meio maço fumado, Dona Eugénia vasculhava a sua mala envelope à procura do lencinho branco de cambraia com bordado inglês. E lá vinha ele, das entranhas daquela mulher de metro e meio, cabelo armado, roupa clássica e maquilhagem duvidosa: um portentoso, azul-esverdeado e ligeiramente viscoso escarro que ela puxava, estremecendo, e deixava descair dos lábios entreabertos para dentro do pano.

Depois, Dona Eugénia levantava-se, ajeitava a saia, aconchegava a mala envelope debaixo do braço e fazia sinal «às meninas» que tinha deixado o dinheiro para pagar a conta debaixo do pires.

— Obrigada, Dona Eugénia! Volte sempre! — diziam a dona e a empregada de mesa do lado de dentro do balcão, acenando.

Mas hoje já são sete e meia da manhã, e a Dona Eugénia ainda não apareceu. A mesa do costume, virada para o balcão e de costas para a porta, está ocupada por um calmeirão que come a tosta-mista de boca aberta, soprando migalhas que aterram ao lado do estojo de contrabaixo deitado aos seus pés.

— A Dona Eugénia não vem hoje? — pergunto à empregada quando me traz o café à mesa.

— Oh, não. Hoje, não. Ela nunca vem no dia do aniversário da morte.

— Do marido?

— Não, querida. Da morte dela. No dia 2 de Junho, a Dona Eugénia não sai do cemitério porque fica à espera das visitas.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

 

 

SOBRE A AUTORA

Sandra Henriques

Autora de guias de viagens da Lonely Planet, estreou-se na ficção em 2021, ano em que ganhou o prémio europeu no concurso de microcontos da EACWP com «A Encarregada», uma história de terror contada em 100 palavras. Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Sangue (2022) e Dead Letters: Episodes of Epistolary Horror (2023). Em setembro de 2023, contribuiu com o artigo «Autoras de Terror Português» para a Enciclopédia do Terror Português, editada pela Verbi Gratia. Em março de 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editora-chefe.