Embrulho

de Liliana Duarte Pereira

 

Ester tinha 15 anos quando a tia Adelaide, a parteira do sítio, lhe entregou o pacote amarfanhado. Antes de sair porta fora, apressadamente, disse-lhe que devia apenas segurá-lo e que, em nenhuma circunstância, deveria espreitar para o interior, nem entregá-lo à sua mãe.

O movimento e os grunhidos aflitivos sobressaltaram-na. Espicaçada a curiosidade, não resistiu a ver o recheio. Abriu o xaile de forma cuidadosa e viu a sua irmã mais nova pela primeira vez. O seu rosto empalideceu. Não segurava um bebé, mas sim algo inacabado, feito de peças a mais e de peças a menos. O tamanho da cabeça era desproporcional de tão grande, e os olhos estavam cobertos por uma fina camada de pele, acusando a falta de tempo para brotarem do corpo. Os braços terminavam sem o seguimento das mãos, e as duas pernas tinham um par de pés em cada uma. A pele acinzentada revelava fissuras extensas que sangravam sem cessar.

A agitação foi diminuindo e o respirar enfraqueceu até ao último suspiro. Nesse instante, ouviu a porta a abrir e a tia Adelaide a correr com um frasco de água benta na mão. Todos sabiam que, sem o baptismo, aquela alminha arderia no Inferno.

Ester, até hoje, jura que ouviu o fervilhar da água purificada, quando esta tocou o pequeno cadáver.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Liliana Duarte Pereira

Liliana Duarte Pereira, nascida a 30 de junho de 1986, é licenciada em Política Social através do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Sempre quis preparar os mortos para os seus funerais, mas não vingou. Tem fobia a pessoas falecidas e a portas entreabertas. Gosta de animais, de fazer doces, de rir de coisas mórbidas e de escrever.

Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Rua Bruxedo (2022) e Sangue (2022).

Venceu o Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto (2022) com «O Manicómio das Mães», da antologia Sangue Novo.