Enquanto a Neve Dormia
de Pedro Lucas Martins
Vários Invernos passariam até ao beijo que despertaria a princesa de tez branca e lábios rubros. E o tempo muda tudo.
A rapariga, imóvel dentro do caixão de vidro, dormia, alheia ao mundo, indefesa contra os que, na noite, a coberto de um bosque sem luar, a procuravam, com mãos sujas e exploratórias, cujos calos nunca tinham conhecido uma pele suave, feminina, adolescente. Visitavam-na aqueles para quem o silêncio se transformara em consentimento, permissão para satisfazer uma variedade de apetites. É certo que só a procurava quem sabia. Apenas quem sabia. Mas a três deles chamara amigos.
A neve continuou a cair sobre o caixão de vidro. Caiu por muito tempo.
Quando o príncipe finalmente encontrou a rapariga e a beijou, esta pareceu despertar de um pesadelo longo, confuso, impossível de recordar. Havia algo de errado naquele beijo, naquele toque e proximidade. E por mais que a mente a quisesse fazer esquecer, o corpo… o corpo lembrava-se.
As estações passaram, mas nunca deixou de ser Inverno. E nem um ano demorou até que a princesa se visse novamente num caixão. Desta vez, felizmente, dentro da terra, sem esperanças de acordar.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
Pedro Lucas Martins
Pedro Lucas Martins nasceu em 1983, em Lisboa. Desde aí, não se lembra de uma altura em que não gostasse de terror.
Com estes gostos, preocupou toda a gente à sua volta. Naturalmente, insistiu e venceu-os pelo cansaço.
Agora, entre outras coisas, escreve e edita ficção de terror, tendo sido esta reconhecida com o Prémio António de Macedo (2018) e com o Grande Prémio Adamastor da Literatura Fantástica Portuguesa (2020). Em março de 2022, cofundou a Fábrica do Terror, onde desempenha a função de editor literário.