Epístola Jugular

de A. M. Catarino

 

Os livros religiosos estão cheios de hereges, mártires e supliciados. Nas páginas sagradas, bem poderia ter sido usado sangue em vez de tinta, e pele humana no lugar de pergaminho.

Profeta é uma profissão de risco.

Eu sabia-o quando abandonei a minha aldeiazinha no Norte e me fiz à estrada. Deixei para trás família, profissão e amigos. Como bagagem, levava apenas uma mensagem.

Pelo caminho, encontrei doze seguidores.

Espalhámos a promessa, aproximando-nos da capital.

Chegámos ao crepúsculo, nas vésperas das festas da cidade. As multidões estavam em êxtase, mas não por minha causa. Não desejavam a palavra. Bastava-lhes uma sardinha em cima duma fatia de pão e a música estridente a fazer feedback nas colunas, espalhadas estrategicamente pelas ruas dos bairros mais antigos da metrópole.

Escusado será dizer que eu e os doze esperávamos outra recepção. Percorrêramos muitos quilómetros na esperança de partilhar a boa nova.

Entretanto, a noite caíra como um manto negro sobre a rubra silhueta da cidade.

Desgostados com a folia inconsequente, recolhemo-nos à sala de jantar dum amigo dum amigo. Aí, mais uma vez, dei de comer a minha carne e de beber o meu sangue aos meus seguidores. Saciados, aprestavam-se a sair, deixando-me a recuperar sobre a mesa os três dias do costume, quando os gritos começaram.

A legião de convertidos que fizéramos pelo caminho adentrara a cidade.

A morte não era o fim. Algo me acontecera em criança naquela viagem ao Egipto. Não seria por acaso que o povo encerrava os antigos governantes daquela terra em colossais túmulos, meticulosamente pensados para não deixar sair os mortos. Algo me aconteceu nessa viagem, já não me lembro o quê. Algo novo, que me transformaria no primeiro duma nova espécie. Algo que incubara lentamente no meu corpo, até àquela noite em que tive de abrir caminho do meu caixão até à superfície do cemitério.

Uma falange de figuras cambaleantes fazia o festim pelas artérias da cidade. O sangue escorria por lábios pútridos enquanto a carne se desfazia, em dentes sujos e apodrecidos. O rio da cidade tingiu-se de vermelho naquela noite.

Só os crentes assistiram de pé ao nascer do Sol.

A cidade era agora pertença dos mortos-vivos.

Por esta razão se encontram nas casas dos meus seguidores aquelas enigmáticas pinturas, representando uma ceia com figuras de tez azulada e silhuetas doentias, onde o homem ao centro se oferece como repasto aos doze convivas que o rodeiam.

É também por isso que, de facto, lês estas palavras escritas a sangue, numa página feita de pele humana.

Palavra do Senhor.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE O AUTOR

A. M. Catarino

A. M. Catarino vive uma vida dupla: na primeira, é formador externo em vários centros de formação profissional da zona Oeste; na segunda, é autor de variadas obras literárias e fotográficas, tanto a nível individual como colaborativo.

Nesta segunda encarnação, recebeu já diversas distinções e galardões, dos quais se destaca o Prémio Internacional Books & Movies 2017 – Município de Alcobaça.

Mais informações em www.amcatarino.com.