Eram Quatro
de Carolina Fidalgo
Ontem, eram quatro, mas hoje já são cinco.
Olho para eles, um a um, tentando encontrar o intruso. Não o descubro.
Reparo nas roupinhas. Por certo, haverá uma camisolinha desconhecida, um par de sapatinhos que não reconheço. Mas lembro-me de todas aquelas peças, poderia até contar a história da origem de cada uma. Aquela comprei-a no Vasco da Gama; aquela foi a minha sogra numa loja à frente do seu prédio.
Regresso às caras, procurando. Conheço-os a todos. Apenas o número denuncia — há um que não devia estar ali.
Perscruto a expressão do Diogo em busca de uma dúvida gémea da minha, mas não a encontro. Para ele, nada é fora do comum. É a mim que me cabe esta estranheza e, porque sozinha, escondo-a.
Chega o dia seguinte. Agora, já não são cinco, mas seis.
Finjo serenidade ao lavar a loiça, enquanto vou espreitando por cima do ombro, contando-os. Um, dois, três, quatro, cinco. Seis. E torno a contar. Um, dois, três, quatro, cinco. Seis. O Diogo dá-lhes os copos com leite. Um para cada um. Um, dois, três, quatro, cinco, seis copos de leite. Seis pratinhos. E seis pãezinhos com doce de morango. Volto a vasculhar-lhe os modos, esperando que ele hesite e que repare: espera lá… Mas o Diogo não repara, e torno a guardar para mim o estranhamento, envergonhada. Volto a ver-lhes as caras, conheço-os, mas continuo certa de que, há dois dias, havia dois a menos, e não sei como é possível a não ser que dois deles sejam cópias dos originais, o que não explica por que não sou capaz de identificar nenhuma repetição quando os olho e os conto: um, dois, três, quatro, cinco, seis.
Mais um dia que se passa. A manhã chega e não me levanto.
— Está tudo bem? — pergunta-me o Diogo.
Hesito; sei que é o momento. Podia contar-lhe.
Forço a tosse e desculpo-me:
— É só uma constipação.
O Diogo trá-los à porta do quarto para me verem antes de os levar ao infantário. A mãe está doente, avisa, precisa duma forçazinha, vão lá dar-lhe um abracinho. E são já demais para que assomem todos de uma vez. Vejo-os entrar no quarto um a um. Uma cabecinha, duas cabecinhas, e três, e quatro, e a quinta… a sexta… a sétima cabeça.
Aceito que nunca voltarei a chamar os meus filhos pelo nome.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE A AUTORA
Carolina Fidalgo
Nasceu em Coimbra em 1992, mas cresceu entre a Gardunha e a Serra da Estrela. Estudou Línguas Modernas na Universidade de Coimbra, tem um mestrado em Literatura e outro em Estudos Editoriais. É professora de Português. Já morou na Escócia e na China. Agora, vive na Suécia.