Esquizo

de André Moreira

Anda lá! Levanta-te!

— Porra para esta voz! — gritou Abel para as paredes. — Cala-te de uma vez! Deixa-me em paz!

Põe-te a pé!

— Já não posso mais contigo! — Levou as mãos à cabeça e empurrou as palmas para cima, esticando a pele e o cabelo. — Se me levantar, ficas calada?

Só vais saber se o fizeres.

Deu-se por vencido e levantou-se do sofá de pele castanha. Estava tão bem sentado! Por que raio é que se tinha de levantar?

Deixou-se estar frente ao sofá. O plasma estava desligado e a hora tardia fazia com que a sua respiração fosse a única coisa a ouvir-se.

Estava em pé, e agora? Parecia que a voz se tinha calado, mas falaria novamente se se voltasse a sentar?

Não ia esperar para descobrir. Saiu da sala para o corredor escuro. Acendeu a luz e entrou na cozinha.

Isso mesmo! Foste para onde eu queria sem sequer te ter mandado! Muito bem!

— Raios partam! — berrou Abel. Os vizinhos deviam estar prestes a chamar a polícia, o que talvez até fosse bom… — Pensava que ias ficar calada!

É verão, deve estar uma noite quente, não achas?

Abel encolheu os ombros e foi até ao frigorífico.

Vai lá ver.

— Não vou sair agora. É tarde, estou de pijama e não quero.

Sai.

Abel voltou a levar as mãos à cabeça e coçou o pescoço. Apetecia-lhe puxar o cabelo, esgravatar o crânio e arrancar a porra da voz! Mas que outra opção tinha ele? Ia ter de sair. Desta vez, no entanto, não se ia mexer. Não! A voz tinha-se calado assim que ele se pusera em pé. De certeza que teria ficado em silêncio se ele não se tivesse mexido.

Saiu.

A porta bateu atrás dele e a noite amena envolveu-o. Nem pareciam duas e meia da manhã ou lá que hora era. As estrelas viam-se pouco, o tapete de entrada almofadava-lhe os chinelos. Corria uma brisa suave, fria o suficiente para ser agradável, mas sem chegar a arrepiar. Agora, conseguia ouvir alguns pássaros, o restolhar das folhas do diospireiro e os carros a passar ao longe, numa estrada qualquer.

Ficou ali, a um pequeno passo da porta. Não se mexeu nem um milímetro, não dando à estúpida voz um motivo. Começaram a doer-lhe os calcanhares, as pernas, os ombros e o pescoço. A cabeça pesava-lhe, as pálpebras também. Desejou a cama e a almofada fofa, o ar-condicionado, descansar um pouco.

Cabeceou.

Não gostas de liberdade?

Os olhos arregalaram-se e reviraram-se.

— Era livre se me deixasses em paz! — revoltou-se Abel. Porque é que tinha adormecido? Que merda!

Haverá mais paz do que esta? Não sentias falta da brisa? Há quanto tempo é que não saías?

— Há muito — reconheceu, com a voz cheia de desdém. — Mas não interessa! Estou bem aqui. Não me vou mexer. Fico aqui para sempre e tu morres!

Vai para a rua! É a tua oportunidade!

— Não.

Vai! É agora!

Avançou. Passou pelo carro empoeirado de tanto estar no mesmo sítio. Foi até ao portão de metal, com a tinta branca a descascar. Saiu para a estrada de paralelos.

Cheirava-lhe à relva do jardim, e fazia ali um pouco mais de frio. A rua estava iluminada por um único poste de iluminação pública, cuja lâmpada estava a dar as últimas, falhando constantemente. Um morcego pequeno esvoaçava à volta do poste e espalhava sombras pelo piso. Noutra altura, talvez se assustasse.

À sua esquerda, a rua descia e perdia-se na total obscuridade das vias de circulação rurais. À direita, subia rumo à aldeia e às casas dos vizinhos, a mais próxima a menos de dois metros.

E se lhes pedisse ajuda? Podia tentar! Mas como dizer a alguém, às tantas da manhã, que havia uma voz a falar-lhe sempre que ele se movia… Iam achar que estava maluco!

Não! Ia ficar ali outra vez. Ia sim! Nem que fosse até de manhã. Quando o padeiro aparecesse, fingiria que estava à espera dele e pronto, ninguém ia suspeitar.

É para a esquerda que deves ir. Nem devia ter de dizê-lo.

— Porquê?! — gritou. Já nem queria saber dos vizinhos. — Nem sequer me mexi! Deixa-me em paz!

Se não é agora, nunca mais é! Corre e pira-te daqui!

— Não vou correr para lado nenhum! Não te vou dar mais medo, nem mais ansiedade, nem mais obediência! Vou esfaimar-te e deixar-te morrer!

Tu morres primeiro.

— Isso querias tu!

Não há volta a dar.

— Nunca me vais vencer!

Abel estava farto. Ia invocar toda a coragem que ainda lhe sobrava no corpo, na alma, no coração, onde quer que fosse! Que se lixasse a voz! Não ia obedecer!

Corre para a esquerda! Já! O tempo está a esgotar-se!

— Não! Morre de uma vez!

Já! Vai! Vai!

Um carro surgiu a toda a velocidade. Os faróis iluminaram a estrada e o ruído do motor encheu-lhe os ouvidos. Tentou perceber quem era, mas o banco do condutor estava vazio. O volante mexia-se com vontade própria.

— Que raio?!

Vês? Ou vais já ou não vais!

— Vai tu para o caralho!

Puxou de toda a coragem e, em desobediência, começou a correr para a direita, mas, ao fim de sete passos, bateu contra a escuridão com tal força que caiu para trás.

Doía-lhe a cabeça. As estrelas foram substituídas por um teto branco cheio de manchas pretas e um candeeiro velho.

— Está tudo bem, Abel — disse-lhe, carinhosamente, a enfermeira Matilde. Pôs-lhe a mão na testa e ajudou-o a levantar-se. — Já passou. Vou levá-lo de volta para a cama. Estava quase a sair para a estrada, podia ter-se magoado.

A voz calou-se, e Abel riu-se.

SOBRE O AUTOR

André Moreira

André Moreira é psicólogo clínico, investigador, doutorando, técnico de apoio à vítima e um ávido consumidor de tudo o que é fantasia, ficção científica e história. É natural de Lousada, um pequeno concelho rodeado de montanhas na zona do Vale do Sousa.
Escreve desde pequeno, impulsionado pelas leituras e pela grande necessidade de contar ao mundo sobre aquela vez em que umas andorinhas o «atacaram».