Estafetas

de Laura Vasques de Sousa

 

— Salva-te ou salva-o!

Entregou-me um envelope e, sem olhar para trás, continuou a correr. 

Estava desgastado, húmido e não tinha nada escrito no exterior, o envelope. Já o rapaz, estava despenteado, transpirado e tinha o pavor estampado nos olhos. 

Fiquei estático, com a carta sem remetente nas mãos, a vê-lo escapar-se por uma ruela.

Olhei para o sentido oposto, na tentativa de perceber do que fugia, mas a movimentação na rua parecia ter a dinâmica habitual. 

Mais um maluco, pensei, enquanto amachucava o papel e o atirava para o chão.

Recolhi as mãos nos bolsos do casaco, prestes a seguir o meu caminho, quando encontrei, num deles, um papel que parecia sujo e gasto ao toque. Retirei-o e confirmei, abismado, que o envelope que tinha acabado de deitar ao chão, estava novamente na minha mão no seu formato original, como se eu fosse sua propriedade. 

Foi então que os vi. O jovem encostado à paragem do autocarro, virado de costas para a estrada. O homem que folheava o jornal sem olhar para as folhas. A rapariga que remexia nas laranjas do quiosque sem escolher nenhuma. Todos eles me olhavam fixamente, com movimentos respiratórios tensos, que faziam os ombros ondularem como as vagas do mar. Tinham o olhar febril; eram touros prestes a investir. 

Invadiu-me o desconforto de quem se sente vigiado, seguido pelo terror de quem se descobre uma presa. 

Sem os perder de vista, dei alguns passos à retaguarda. Os três, de imediato, mostraram-me os dentes. E avançaram no meu encalço. 

Virei-lhes as costas e comecei a correr, sem saber propriamente do que fugia. Contornei a primeira esquina que surgiu no caminho, assustando um pequeno bando de pombos que debicava restos de comida do chão e que levantou voo com rotas aleatórias. 

Uns metros mais à frente, olhei por cima do ombro. Os perseguidores, já mais de duas dezenas, jorravam da curva numa corrida desenfreada. 

Desnorteado, quase abalroei um velhinho corcunda que deambulava apoiado numa bengala. Vi, nos seus olhos enrugados, o reflexo do meu desespero. 

Soube, naquele segundo, que não havia mais nada que pudesse fazer. 

— Salve-se ou salve-o!

Sem olhar para trás, continuei a correr.


SOBRE A AUTORA

Laura Vasques de Sousa

Nascida em 1978, por engano, em Lisboa.
Criada na Moita, de onde herdou o sangue, mas não as tradições.
Iniciou os estudos em 1985, por curiosidade própria, e ingressou na escola no ano seguinte, como a lei exigia.
É licenciada em Biologia Aplicada aos Recursos Animais (FCUL) e em Cardiopneumologia (ESTeSL), profissão que exerce.
Pratica regularmente exercício físico, panificação caseira, agricultura de varanda e jardinagem em vaso.
Desde o início desta aventura, esteve rodeada de livros, leituras e escritas, mas apenas depois dos 40 anos teve a lucidez de lhes fazer a vontade.