Estigma

de Sandra Amado

 

Desde pequeno que percebi que vivia num mundo diferente. Na escola, miúdo franzino, escondia-me nuns óculos garrafais redondos e não tinha amigos. Nos intervalos, entretinha-me a falar com os meus amigos imaginários: os armários, os livros e alguns pássaros que encontrava no recreio.

Tinha muito tempo disponível. Esse, porém, não se traduzia nos melhores resultados escolares. Sempre que recebia o boletim, era um momento de tensão, e eu era o centro das atenções. A solução da escola foi sugerir que eu fosse acompanhado por um pedopsiquiatra, para melhor me enquadrar na massa estudantil.

Expectante com a minha nova versão, descemos a rua da Gare, conhecida pelos assaltos. O prédio do consultório cheirava a cão e tinha a tinta amarela descascada. Não havia acesso direto às escadas e tivemos de usar o elevador velho com graffiti e a tresandar a tabaco. Carreguei no botão do oitavo andar e começámos a subida. Os cabos do elevador gemiam e as pernas tremiam-me involuntariamente. Ainda ficámos presos no sétimo andar, mas apenas por um momento. A minha mãe tirou o casaco, e eu carreguei em todos os botões. Felizmente, conseguimos sair!

A mando da minha mãe, toquei numa campainha engordurada, que me obrigou a limpar a mão nas calças. Conversámos com a rececionista e ficámos na sala de espera. A sala estava vazia. Minutos depois, uma senhora de cabelos castanhos encaracolados e ar divertido, ocupando volume na sala, conduziu-nos até ao escritório. Sentámo-nos nas cadeiras e, ao contrário do que eu imaginara, não existia o tal divã para começar as confissões, apenas uma marquesa preta.

A minha mãe foi a primeira a falar:

— Ele ouve vozes.

Encolhi-me como uma ave rara, e a psiquiatra, inesperadamente, contrapôs:

— E o que é que isso tem de mal?

A minha mãe baixou a cabeça e respondeu que, se eu não me integrasse na escola, teria de ser transferido para uma escola especial. A psiquiatra revirou os olhos e mandou a minha mãe sair da sala. Depois, disse-me numa voz séria:

— Irritam-me as pessoas que são todas iguais.

Fiquei a perceber, desde esse dia, que não tinha mal nenhum ser diferente. Agradecido, despedi-me da psiquiatra e, às escondidas, enfiei um abre-cartas no bolso. Feliz com a epifania, saí do consultório em câmara lenta e segui as vozes piamente. Esbocei um sorriso, dei um abraço sentido à minha mãe e enterrei-lhe o abre-cartas no pescoço. A partir desse dia, nunca mais deixei de ser eu próprio.

SOBRE A AUTORA

Sandra Amado

Sandra Amado nasceu em Lisboa, em 1972, e vive no Luxemburgo desde 2011. Em Portugal, licenciou-se em Sociologia. No Luxemburgo, estudou Gestão, desenvolvendo, ao mesmo tempo, uma paixão pela língua francesa.

As saudades de Portugal e uma nova identidade cultural foram os motores da escrita — mal du pays, como dizem os franceses.

Iniciou-se na escrita criativa em francês, sempre com vontade de ir mais além. Durante o confinamento, apaixonou-se pelos cursos de escrita de terror da Escrever Escrever, integrando, mais tarde, a antologia Sangue Novo, com o conto «A Mais Bela Profissão».

Aprecia o gótico, as emoções, as sensações e a acústica que cria nos seus contos. Acredita que o percurso de uma vida normal, como a sua, poderia dar um conto de terror, e é por isso que acredita nesta escrita.