Estou a Ver-te

de Patrícia Sá

Diziam-me que era daqueles paranoicos que acham que estão sempre a ser perseguidos. No entanto, só a segunda parte dessa frase é que estava correta, porque eu era, de facto, constantemente perseguido. Ser invisível não fazia do perseguidor outra coisa que não isso mesmo.

Este, além de invisível, era impalpável. A única forma que tinha de saber que ele existia era a respiração quente na minha nuca e aquele segredar ao ouvido:

Estou a ver-te.

Virava-me e a presença pesada e agonizante desaparecia. Surgia ocasionalmente, nas alturas em que baixava a guarda e em que, vejam bem, até me esquecia do meu perseguidor.

Percebia que ele tinha duas missões: lembrar-me de que me via e isolar-me ao ponto de enlouquecer.

Mais ninguém sentia aquela presença. Mais ninguém ouvia aquele segredar. Amigos e familiares preocuparam-se a sério quando me viram barricado em casa, de caçadeira em punho e com o capacete da mota na cabeça. Disse-lhes apenas que não fizessem barulho, que seria desta que apanhava o sacana.

Bilhete direto para o asilo, foi o que foi. Passei a viver numa cela branca, com luzes ofuscantes que zumbiam sem parar. Era o único barulho que ouvia após a saída dos enfermeiros e com as medicações que me obrigavam a tomar.

Sabia que tudo aquilo era inútil, não estava louco. E a prova estava mesmo ali, comigo, na minha cela. Aquilo, sim, endoidecia-me de dia para dia.

Estou a ver-te.

A certa altura, aceitei que talvez se tratasse de uma alucinação. Comecei a tomar os medicamentos de bom grado. Sorri aos meus familiares e amigos quando me visitavam. Agradeci aos meus cuidadores por todo o trabalho prestado. Consegui até abstrair-me do bafo húmido na nuca e dos murmúrios. Vivia pacificamente na minha pequena cela.

Até que, um dia, os sussurros e a respiração desapareceram. Na verdade, não me assombraram durante tanto tempo que fui dado por curado. Tive alta. Regressei a casa. Todos fizeram uma grande festa. Estava feliz.

Foi nessa mesma noite que o meu perseguidor se revelou — um inseto gigante, de olhos esbugalhados, a emitir um zumbido horrendo que me lembrava as luzes do asilo. Tinha uma boca fina como um trompete e o corpo e as asas de uma barata. Inclinou-se sobre mim e disse:

ESTOU A VER-TE.

Saquei da caçadeira que guardava debaixo da cama e lancei-me sobre o bicho. Espanquei-o com o canudo duro, com toda a fúria escondida no meu âmago e que aguardava a libertação.

O monstro, contudo, era mais forte do que eu e não tardou a imobilizar-me, posicionando-se por cima de mim. Olhei-o nos olhos horríveis e disse:

— Também te vejo!

O monstro rugiu, uma coisa ensurdecedora e gutural. Desintegrou-se em pequenas partículas de pó que flutuaram levemente até ao chão. Não consegui mover-me durante instantes, ouvindo apenas o bater acelerado do coração e a respiração rápida que tentava acalmar.

Teria vencido? Teria, finalmente, posto fim àquela perseguição? Durante os dias seguintes, julguei que sim. Acabaram-se os sussurros. Acabou-se o bafo na nuca. Acabaram-se as lutas com um recorte dos meus pesadelos. Questionei-me acerca da finalidade de tudo aquilo. Sim, porque tinha de haver uma finalidade.

E foi assim que descobri o meu propósito, irmãos! Mostrar-vos como derrotar os vossos demónios! Como derrotar os demónios dos pobres coitados que não sabem que os têm! Hoje, marchamos em conjunto!

O podcast «Também te Vejo!» conta, até ao momento, com um número de 0 ouvintes.

SOBRE A AUTORA

Patrícia Sá

Patrícia Sá nasceu em 1999. Desde muito cedo que encontrou um refúgio na escrita e estreou-se como autora em 2021, com o conto «Amor», na antologia Sangue Novo. Interessa-se especialmente pelo estudo da monstruosidade na literatura, nas artes e na cultura. Está determinada a provar que o terror é um género sólido. A arma dela? Resmas de livros teóricos sobre o assunto. Sublinhados. E com post-its.