Estrela da Manhã
de António Bizarro
Após uma curta viagem através das ruas escuras e frias da cidade, ajudam-me a sair do carro. No interior do edifício, cuja localização até hoje desconheço, retiram-me a venda e conduzem-me até a uma sala iluminada por velas, onde se me depara uma encenação tétrica, parte do ritual a que havia sido convidado a assistir.
Junto a um altar, encontra-se a Sacerdotisa, envolta em látex negro, com uma capa sobre os ombros. Ao seu lado, um homem de barba e cabelos compridos, com uma coroa de espinhos na cabeça e piercings reluzentes nas narinas e nos mamilos, exibe sem pudor o pénis obscenamente erecto, numa sacrílega personificação de Cristo. Por trás dele, numa jaula, está uma jovem prestes a ser ofertada ao Grande Cornudo. As grades que a rodeiam representam a moral e ética cristãs, que reprimem a sua sexualidade vital.
Espalhados pela divisão, consigo divisar instrumentos de tortura medievais ao jeito da Santíssima Inquisição, além de correntes, algemas, pentagramas, cruzes invertidas, uma edição antiga (provavelmente a primeira) d’A Bíblia Satânica, de Anton LaVey, ilustrações de actos de sodomia entre cadáveres mutilados e diversas representações de Satanás, dotado de enormes falos e línguas bifurcadas. Numa das paredes, podia ler-se, em latim, uma descrição vívida e pormenorizada de uma relação menos própria entre São João Baptista e Jesus de Nazaré.
A Sacerdotisa, numa voz cavernosa, começa a entoar uma oração.
— In nomine de nostre Satanas, luciferi excelsi! Ave voluptatis carnis!
Uma figura humana, coberta por um manto e um capuz negros, faz com que a jovem, nua e embriagada, saia da jaula e se ponha de joelhos. Explicam-me que irá ser submetida à prova da repugnância. Uma outra figura de negro entra na sala, trazendo um recipiente. A jovem é forçada a ingerir algo que não consigo discernir (e que o meu guia se recusa a nomear) e fá-lo com visível dificuldade.
A Sacerdotisa mune-se então de um longo punhal, de lâmina serpenteante e cabo cravejado de pedras preciosas, e degola uma galinha preta, despejando o sangue para dentro do recipiente que a jovem se vê obrigada a beber. Quando a forçam a comer as miudezas cruas da galinha, entre espasmos e soluços, regurgita o repasto. É ordenado que seja colocada sobre o altar de barriga para baixo. A Sacerdotisa chicoteia-a com um látego grosso e comprido, com uma expressão irada a deformar-lhe o rosto. Um dos homens de negro posiciona-se por trás dela, contorcendo-se como um animal, enquanto a veneranda mestra repete um cântico lúgubre.
A jovem é depois virada de barriga para cima. A Sacerdotisa faz-lhe uma incisão no peito com o seu longo punhal cerimonial, após o que introduz a mão dentro da cavidade torácica, retirando o coração ainda pulsante, bebendo o sangue de forma sôfrega.
— Immortalitas! — exclama a Sacerdotisa, com o sangue a escorrer-lhe pelo queixo.
É anunciado o fim da cerimónia e sou conduzido para fora da sala. No exterior do edifício, voltam a vendar-me os olhos e ajudam-me a entrar no carro que me irá conduzir de regresso ao hotel. Gostei da performance.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE O AUTOR
António Bizarro
António Bizarro é um escritor e músico nascido em 1978, em São Paulo, Brasil, e vive no Barreiro. Entre 2006 e 2021, editou cinco livros de contos, uma noveleta em inglês e um livro de poesia. Em paralelo, lançou seis álbuns de música eletrónica (industrial/ambiental), tendo a sua música sido usada em podcasts, curtas-metragens, documentários e jogos de vídeo. As suas principais influências são os Alice in Chains, o J.G. Ballard e o David Cronenberg.
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