Estudo em Carmesim

de Miguel Gonçalves

 

O cavalete balançava no chão irregular da encosta onde tinha sido colocado. Parecia que podia cair a qualquer momento, a cada pincelada.

Vanessa não se importava. Estava demasiado perdida na cena que se desenrolava mais abaixo da colina verde, e que passava para a tela. Um grupo de pessoas juntava-se à volta de um buraco rectangular. Em seu redor, havia pedaços de alvenaria de pedra, uns maiores, outros mais pequenos, todos com nomes e datas gravadas.

Desde nova que pintava cenas como esta. A princípio, dizia ao pai que ia apenas ao parque, ou à biblioteca, ou a casa de algum amigo — como se tivesse algum — para poder entrar à socapa no cemitério e desenhar algum cortejo fúnebre a decorrer. À medida que foi crescendo, deixou de se esgueirar. Tornou-se dona do seu passatempo, inscrevendo-se em cursos de arte para melhorar a técnica, acabando por ganhar uma bolsa de estudo para uma das mais prestigiadas escolas de arte. Começou a frequentar assiduamente os cemitérios locais e até se familiarizou com os coveiros, que a informavam dos enterros e cerimónias. Começou a aperceber-se dos sítios «secretos» onde outros jovens se encontravam, longe dos olhares dos adultos, algo que não teria descoberto se não passasse tanto tempo nestes locais. Vanessa ignorava esses encontros. Precisava de se manter atenta.

Graças aos seus quadros, foi convidada a fazer parte de algumas exposições — principalmente de artistas amadores com inclinações para temas menos ortodoxos. Numa delas, um jovem que fotografava os seus gatos vestidos de personagens históricas perguntou-lhe por que razão pintava funerais. «Porque, num funeral, as pessoas estão no seu momento mais verdadeiro e mais falso. Há uma dualidade nelas. Ninguém fala mal de um morto, mesmo que o queira fazer.»

Ela acreditava nisso, mas era também uma meia-verdade.

Vanessa procurava algo mais em cada pintura sua. Tinha cinco anos quando pela primeira vez vira o vulto que tanto tentava capturar na tela. Estava sentada numa cadeira de plástico ao lado do pai enquanto o corpo da mãe recebia os últimos adeuses, antes de descer para o seu descanso final. Tinha apertado a mão ao pai para lhe chamar a atenção e perguntado quem era a senhora que ali estava à beira da mãe. Mas o pai afirmava não ver ninguém, tendo acabado por afastá-la do enterro entre gritos de «Mas está ali, papá! Está vestida de vermelho. Está ali!». 

Para o pai, tinha sido o trauma que a levara a ver algo que não estava lá, e o tempo acabou por fazer com que tudo caísse no esquecimento. Para Vanessa, no entanto, aquela imagem ficara-lhe gravada na mente, e revelar-se-ia o foco da sua vida adulta.

Por vezes, julgava vislumbrar essa mesma figura que vira há tantos anos, embora, na maior parte das vezes, não passasse de um leve traço carmesim na tela. Quando era mais visível, não tinha sempre a mesma forma — umas vezes mais feminina; outras, decididamente, masculina, mas sempre vestida de vermelho, no meio de um mar de enlutados que trajavam de preto. Depois, dissolvia-se no éter, como se se apercebesse de que Vanessa olhava directamente para ela.

As pessoas comentavam, quando achavam que Vanessa não podia ouvir. Diziam que tinha um problema, que era obcecada e mórbida, que andar em cemitérios não era saudável. E tinham razão, ela era obcecada: com a figura e com a razão pela qual esta escolhera revelar-se a ela.

Assim, Vanessa continuava a desenhar e a pintar, tentando aproximar-se ainda mais. Esperava pela hora em que as famílias e os amigos regressavam a casa, deixando os mortos para o seu repouso, restando apenas a figura. Nesse momento, Vanessa pousaria o pincel e iria até ao local da campa, onde a figura estaria à sua espera, com respostas. Até lá, manteria a vigília. E continuaria a pintar.

 

*

 

Tinha sido um dia atarefado e Vanessa já estava a pintar a sua terceira tela. Estas iriam encontrar o seu lugar encostadas às lápides das pessoas cujo enterro representavam. Vanessa não se interessava muito com o que lhes acontecia depois disso; pensava apenas que a figura vermelha ainda não se dera a conhecer.

Continuou a pintar a cena. O padre usava uma estola roxa com um significado que Vanessa não sabia nem queria saber. O que realmente importava era a ausência de vermelho.

Começou a arrumar as coisas quando a última pessoa, um dos homens responsáveis por encher a campa, se foi embora. Olhou para o relógio e decidiu que podia relaxar um pouco antes de ir para casa. Sentou-se e encostou-se a uma árvore próxima. Pegou no caderno de desenho e começou a rabiscar algo distraidamente, parando apenas para afiar o lápis com o x-acto.

Viu a gota vermelha atingir o desenho antes de sentir a lâmina no dedo. O vermelho deslizou pelo papel. Só então reparou que se tinha desenhado a si própria.

Olhou para o lado, onde o sangue formava uma linha, e viu uma figura sentada junto a si. Conhecia-llhe o rosto, mais por fotografias do que por memórias. Era o rosto da sua mãe. Vanessa, no entanto, sabia que não era ela. A figura estava apenas a usá-la.

A face sorriu, usando os lábios da mãe. E sussurrou apenas uma palavra:

«Brevemente.»

 

Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE O AUTOR

Miguel Gonçalves

Miguel Gonçalves nasceu no Porto, Portugal, nos anos 80.
Cresceu com banda desenhada, livros de fantasia e de terror — bem como filmes — e com bandas de rock.
Desde muito novo que escreve, sobretudo para si próprio, e as suas histórias são uma mistura de terror, thriller e serial killers, com algumas delas a aventurarem-se no espectro sobrenatural do terror.
Passa o seu tempo livre a jogar roleplaying games, a ler e a beber café.
É o autor de The Scarecrow Man, que foi publicado na antologia da Dark Pine Publishing e independentemente como minilivro.
Se estiverem no Porto, é provável que o encontrem num Starbucks a ler ou a rabiscar num caderno.