Eu Avisei-a

de Maria Varanda

 

Quero contar-vos a história que me fez vir parar a este sítio, onde abandonam os loucos e os inimputáveis. Quero contar-vos a história tal qual como ela é, curta e simples. Quero contar-vos, mas prometam que acreditarão em mim. Não vai ser fácil, mas o que vos vou dizer é a verdade. Eu não sou louca. Não pertenço a este sítio. E vão perceber porquê.

Quando comecei a trabalhar como enfermeira, imaginei-me a fazer turnos numa maternidade ou numa unidade de pediatria, mas, quando consegui o meu primeiro (e único) emprego num hospital, fui destacada para uma unidade de idosos. Descobri que, afinal, preferia cuidar de adultos, mas uma coisa nunca deixou de me dar a volta ao estômago: as próteses dentárias.

Muitas vezes, quando entrava um doente novo e lhe prestávamos os primeiros cuidados de higiene oral, descobríamos todo o tipo de crescimentos alienígenas nas próteses dentárias. Algumas chegavam mesmo a parecer cariadas, mas na realidade eram anos e anos acumulados de falta de salubridade. É difícil manter cara séria, e muito menos simpática, quando tiramos os dentes de um velhinho e passamos quase meia hora a esfregá-los sem sucesso.

Das primeiras ocorrências, vêm os vómitos. Com as dentaduras seguintes, as piadas: «Então, ninguém lhe lava os dentes desde a morte do Rei?». Mas, com o passar dos anos e dos dentes amarelados cheios de tártaro, restos de bolacha maria do serviço de urgência e coisas que, às vezes, juraríamos ter vida própria, vem a indiferença. Indiferença, porém, não foi a minha reação perante este episódio que quero contar.

O turno da tarde termina com deixar os doentes confortáveis no leito para uma boa noite de sono (ou menos boa, se forem os infortunados que têm de ser adaptados ao ventilador no período noturno). Depois de dar os comprimidos a uma senhora de cabelo branquinho, muito semelhante a neve acabada de cair, internada no hospital há uns dias, descobri uma dentadura debaixo da sua almofada. Tinham-na trazido os familiares, na visita da manhã.

— Não quer guardar os dentes na caixinha, D. Filomena? Amanhã volta a pô-los para o pequeno-almoço — disse eu, pegando nos dentes e franzindo o sobrolho ao notar o quão limpos me pareciam em contraste com a luva azul-escura. Devia ser recente.

A D. Filomena tirou-me a placa dentária das mãos como se fosse o seu maior tesouro e voltou a pô-la debaixo da almofada. Aconchegou-se em decúbito lateral direito e falou, com os lábios flácidos caindo sobre as gengivas:

— Dormia sempre com os outros dentes debaixo da almofada. Lá porque estes são novos, não vão ter tratamento diferente.

— Depois não me diga que eles lhe mordem durante o sono. — Fiz uma careta assustadora e dei-lhe um beliscão no braço com a suavidade de uma borboleta a pousar num jasmim. A D. Filomena riu-se e acariciou-me a mão.

— Durma bem — disse-lhe antes de sair.

Ao fechar a porta do quarto, como a D. Filomena pedia sempre todas as noites desde a entrada, a assistente operacional que me acompanhava naquela volta perguntou-me se não eram os filhos da D. Filomena que tinham uma agência funerária. Confirmei, ao que ela acrescentou:

— Esperemos que não tenham trazido os dentes de um cliente a quem já não faziam falta.

Ri-me, mas não achei graça nenhuma. As placas dentárias já me metiam nojo que chegasse, não precisava daquela imagem mental.

Por volta das três da manhã, quando os olhos já pesavam, apercebi-me de que a videovigilância do quarto onde estava a D. Filomena tinha perdido sinal, e o pequeno quadradinho onde antes se podia ver a mesma a dormir tinha sido substituído por uma imagem preta. Levantei-me da cadeira que rangeu em esforço — estava há demasiados anos ao serviço dos rabos das enfermeiras e enfermeiros daquele serviço. Dei uma volta pelos quartos e encontrei a D. Filomena a dormir. Tinha um esgar de sorriso no rosto — devia estar a ter bons sonhos.

A D. Filomena estava internada no último quarto e já eram quase sete da manhã quando chegou a sua vez de tomar os comprimidos do jejum (no caso dela, levotiroxina) e mudar a fralda para uma seca. Nunca mais me vou esquecer do que vi quando abri a porta do quarto 13 nem do grito da assistente operacional atrás de mim.

A cara da D. Filomena estava tão branca quanto o seu cabelo, e os olhos, abertos até as pálpebras parecerem inexistentes, ainda exibiam o terror dos seus últimos momentos de vida. A boca era a entrada de uma caverna e dela saía um rio de sangue que começava a secar no queixo. Tinha algo de estranho e tive de me aproximar para perceber que a língua estava ausente. Pedaços de músculo espalhavam-se à volta do seu rosto como se tivessem sido triturados.

Atrás de mim, a assistente operacional gaguejava, entre choros, que ela ainda estava viva, porque algo se mexia debaixo da colcha antes branca. Olhei à minha volta: era impossível a D. Filomena estar viva, o sangue era tanto que ensopara a roupa da cama e escorrera para o chão.

Obriguei-me a esticar o braço e agarrei os lençóis com a mão enluvada que viera pronta para trocar uma fralda. Onde antes estava o peito da D. Filomena havia agora um enorme buraco e entranhas irreconhecíveis. Sobre a parte superior do abdómen da D. Filomena estava a dentadura, mastigando um bocado de coração. Quando nos viu desmantelou-se em duas porções independentes, como se ali tivesse sido deixada, cheia de sangue entre os dentes postiços, mas não antes de parecer curvar-se sobre si mesma, e de sorrir, mesmo antes de se imobilizar.

A auxiliar gritou de terror e saiu do quarto. Eu fiquei ali, imóvel, a olhar para uma dentadura suja de sangue e músculo cardíaco. Acho que pensei que era um sonho, até a polícia e o chefe de serviço chegarem, uns minutos depois, e me encontrarem ainda dentro do quarto. Tinha o rosto molhado de chorar e os olhos tão inchados que não os conseguia ver bem. Estava sentada no sangue que transbordara. Hoje, consigo imaginar a visão que os recebeu: uma enfermeira doida sentada numa poça de sangue, as socas brancas manchadas, as mãos a agarrar a cabeça entre os fios de cabelo loiros e o corpo a baloiçar para a frente e para trás como uma maluquinha que não consegue acordar. Um agente da polícia ajoelhou-se ao meu lado e perguntou-me o que tinha acontecido.

— Eu avisei-a… a dentadura… — balbuciei e senti o sabor das lágrimas e do ranho que me escorriam pela cara. — A dentadura comeu-a… Eu avisei-a…

Tenho ainda mais medo de dentaduras agora. Felizmente, onde estou, não tenho de limpar nenhuma.

 

SOBRE A AUTORA

Maria Varanda

Nasceu no ano de 1994, sob uma lua minguante, em Sintra, e cresceu a ouvir histórias da aldeia, sobre o papão e ossos escondidos na cave — ganhou-lhe gosto. Está sempre à procura de inspiração na vida real para mais uma história, mas na falta de ideias basta tirar o tabuleiro de ouija, acender umas velas e esperar. Depois, é só passar a mensagem para o papel. Procura-se quem queira ouvir.

A mensagem parece ter chegado aos ouvidos de alguns, com a atribuição do Prémio Adamastor de Ficção Fantástica ao seu conto, «Anfitrite».