Eurípides Encosta a Porta
de Sousa Carvalho
A primeira coisa em que reparei foram as escadas em caracol. Eram um detalhe estranho numa casa relativamente moderna, aquelas escadas altas e finas, o metal exposto, o corrimão excessivamente adornado. Se não fosse por elas, a casa seria perfeita: de um vermelho-terra que se fundia com o verde envolvente, heras a trepar pelas paredes acima, chãos de madeira cuidada, uma cozinha a abrir para um adorável jardim (grande o suficiente para poder dizer que as crianças não cresceram numa caixa, pequeno o suficiente para não me ocupar todo o domingo a tratar). O preço era baixo, e a casa estava possivelmente na melhor zona da cidade, perto da escola, do supermercado, do comboio.
O nosso agente imobiliário da altura era um homem novo, despachado, direto ao assunto. Enquanto as escadas se enrolavam sobre si mesmas, não poupou palavras: três mortes naquela casa, o patriarca perdeu a cabeça e rebentou com a da mulher e do filho, e depois vocês sabem como estas coisas são, a comunidade assusta-se, criam-se lendas, o interesse desce, a renda também. Estupidez: uma casa é uma casa, e pessoas são pessoas, e, se um cliente não consegue distinguir entre esses dois, ele não se sentiria confortável a vender-lhe o que quer que seja. E o agente imobiliário riu-se da sua própria piada, e a minha mulher riu-se com ele, e eu juntei-me nervosamente. E as escadas rangeram de baixinho.
Assinámos o contrato ali mesmo, na mesa da cozinha, as escadas a espreitarem-me por cima do ombro. Não foi uma questão de pressa ou dinheiro. Era uma casa sólida, congruente, como se todas as peças encaixassem umas nas outras, connosco a caber direitinhos lá no meio. Só as escadas me faziam impressão, aquele pedaço de metal deslocado, que se enterrava no rés-do-chão e se espetava pelo sótão adentro, moendo a casa no seu rodar. A minha mulher insistia que eu estava a ser ilógico: era um detalhe tão engraçado, aquele contraste, e dava-lhe um ar antigo, dignificado. O tipo de casa em que podíamos envelhecer juntos. A Ana consegue sempre o que quer — não valia a pena discutir.
Mudámo-nos para a casa ainda essa semana. A carrinha das mudanças vinha cheia até cima, e o condutor, vendo a barriga inchada da minha mulher, decidiu ajudar a carregar as caixas. «É uma boa zona,» disse ele, «perto da escola, do supermercado, do comboio, do hospital. Pena o que aconteceu». A Ana encolheu os ombros, deu-lhe um sorriso descansado. «Menos mal para nós, que a apanhámos a metade do preço,» e acrescentou «deve ser difícil, andar sempre de um lado para o outro; nunca ter onde descansar». «Eu tenho casa, minha senhora, só não é perto». E ela responde, mão protetora sobre a barriga: «se é mesmo casa, está sempre perto».
Eis como a história se passa e como sempre se passou: algo inesperado acontece, começamos a ter problemas financeiros, tenho de trabalhar mais, a minha mulher ressente-me, preciso de um espaço de descanso, mas há algo na casa que não me permite repousar, que não me deixa dormir, e é aí que as escadas, suspeito óbvio, tomam o lugar de personagem principal: mantêm-me acordado, atravessam-me a garganta e moem-me o juízo e rodam e rodam e rodam sem sair do sítio até que eu não aguento mais, perco a cabeça e… vocês sabem o resto. Repito o padrão. Fecho o ciclo. Teria sido, se não desejável, ao menos preferível — o tipo de história com que sabemos lidar; o tipo de história que nos indica o caminho. A madrinha malvada, o filho que toma o lugar do pai, o homem levado à loucura que mata a família; cada personagem tem um trajeto bem definido, e cada trajeto tem um destino final: termina a peça, cai a cortina, vamos para casa. Mas a minha casa tem um buraco no centro, e a minha história também — novas eras, novas danças. As coreografias aprendidas nos mitos da infância falham-me os passos.
Chego a casa o sol ainda brilha. No jardim, flores despontam, tímidas, a saudar a primavera, e o ronronar coletivo dos insetos embala-me de mansinho. Abro a porta devagar, deixo a luz dourada de fim de tarde verter pelo corredor, aquecer o soalho.
— Ana? Estás cá em baixo?
A minha mulher não percebe de casas, mas percebe de abrigos. Espaços onde encaixamos sem esforço, onde nos sentimos seguros. Ela percebe que um abrigo precisa de algo para proteger. Quando chegou ao terceiro trimestre, começou a dizer que se sentia grande como uma casa; quando comia, estava a mandar mantimentos para a cozinha; quando ganhou uns quilos, disse que era um novo colchão para o bebé. Era uma piada entre nós. O ser humano é fascinado por padrões — sabem o que é um fractal? A minha mulher, um abrigo dentro de um abrigo, foi-o brevemente. Antes de o colapsar sobre si mesmo.
O primeiro piso está vazio. Subo as escadas enquanto tiro a gravata. Cai-me uma pinga de suor na mão.
— Ana? — E, pensando que talvez ela esteja a dormir, acrescento apenas de mim para comigo: — A casa está gelada.
A casa não era malvada. Nunca foi. Às vezes, umas escadas são só umas escadas. Às vezes, o corpo morto da tua mulher é uma escolha que ela fez. A casa não tocou em nada sem autorização — sei disso, agora. Foi a minha esposa quem se ofereceu de bandeja. Eu gosto de pensar que foi uma espécie de bondade, um gesto de compaixão — sentindo o feto imóvel dentro de si, prevendo a fuga encenada às memórias futuras daquele local, a Ana teve de tomar uma decisão, e escolheu não fazer a casa passar pela mesma dor que ela acabara de presenciar. Iria ficar lá dentro, para sempre. A Ana consegue sempre o que quer. É uma das razões por que a amo. É a única razão pela qual ainda estou aqui, nestas escadas, passo após passo, pinga após pinga.
— Ana? Estás em casa?
SOBRE O AUTOR
Sousa Carvalho
Sousa Carvalho nasceu em 2023, vítima da necessidade de uma certa estudante de Letras de ter um pseudónimo que servisse de intermediário entre a sua pessoa e o mundo literário. Preso neste papel terrivelmente restrito e completamente à mercê da sua criadora, Sousa Carvalho teve a infelicidade de ser coerente ao ponto de constituir uma entidade, mas não tangível o suficiente para conseguir fazer o que quer que seja quanto ao assunto.