Favorito

de Ana Rita Garcia

 

Este favorito era odiado por todos, e assim mantinha-se sempre próximo do chefe. Não tinha alternativa. Não lambendo botas, nem batendo couros, seria posto de parte. Primeiro, pelo chefe; depois, pelos restantes. Desta forma, mantinha-se imune. Salvo. São e salvo.

Este favorito — chamemos-lhe Manuel — não era o único a beneficiar de favoritismo. Havia outros. Vários. No entanto, até ter de se preocupar com eles, Manuel veria o resto dos comuns serem escorraçados, judiados, e levados para o armazém — ou talvez «arrastados» fosse um melhor termo.

Depois, ouviam-se gritos vindos do armazém. Nessa altura, ninguém falava. Caía sobre eles um silêncio sufocante que durava até se insinuar o cheiro a empadão acabado de fazer. Era então que os sorrisos traziam as gargalhadas de volta. Pelo menos, até à próxima refeição. Até ao próximo empadão. Manuel ia lambendo botas e batendo couros. Talvez assim viesse a ser o último a sentar-se à mesa com o chefe.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

 

SOBRE A AUTORA

Ana Rita Garcia

Sonhadora incurável, adepta de cafés longos e de passeios à beira-mar, nasceu em Lisboa, em outubro de 1988. Cresceu a usar o lápis para se expressar através de formas e palavras. Formou-se em Arquitetura, escondendo a paixão pelas Letras até as histórias começarem a escorrer-lhe pelos dedos. Integrou as antologias In/Sanidade e Dúzia (Editorial Divergência), publicou o conto «Colecionadora» no sexto número da revista literária Palavrar e tem vários contos publicados na página oficial da Fábrica do Terror. Em 2024, foi vencedora do Prémio Ataegina para Conto Original, com Os Acasos Improváveis de Mister Rayleigh.