Favorito
de Ana Rita Garcia
Este favorito era odiado por todos, e assim mantinha-se sempre próximo do chefe. Não tinha alternativa. Não lambendo botas, nem batendo couros, seria posto de parte. Primeiro, pelo chefe; depois, pelos restantes. Desta forma, mantinha-se imune. Salvo. São e salvo.
Este favorito — chamemos-lhe Manuel — não era o único a beneficiar de favoritismo. Havia outros. Vários. No entanto, até ter de se preocupar com eles, Manuel veria o resto dos comuns serem escorraçados, judiados, e levados para o armazém — ou talvez «arrastados» fosse um melhor termo.
Depois, ouviam-se gritos vindos do armazém. Nessa altura, ninguém falava. Caía sobre eles um silêncio sufocante que durava até se insinuar o cheiro a empadão acabado de fazer. Era então que os sorrisos traziam as gargalhadas de volta. Pelo menos, até à próxima refeição. Até ao próximo empadão. Manuel ia lambendo botas e batendo couros. Talvez assim viesse a ser o último a sentar-se à mesa com o chefe.
*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945
SOBRE A AUTORA
Ana Rita Garcia
Sonhadora incurável, adepta de cafés longos e de passeios à beira mar, nasceu em Lisboa, em outubro de 1988. Foi a ver o mar, na margem sul do Tejo, que cresceu a usar o lápis para se expressar através de formas e palavras. A economia nacional obrigou-a, em 2013, a procurar outro país para poder exercer a sua profissão. Trabalhou dez anos como arquiteta em Paris, antes de se mudar para terras escocesas e, no meio destas andanças, compreendeu que, ao ler e escrever na língua de Camões, se sente mais perto de Portugal.