Gabinete de Curiosidades
de Maria Duran
Tens cuidado com os passos, pousas os calcanhares com cuidado, pronto a fugir e temendo ficar parado caso algo se mexa na escuridão, querendo tocar em ti. Vieste em busca de algo e, embora as traças te tenham comido muita da memória, sabes que não podes voltar atrás sem o encontrares.
Não te lembras do que seria, o teu tesouro esquecido: a tua memória não conjura cor ou forma, a tua boca tropeça num nome movediço.
Caminhas sem rumo, sem norte. A memória escapa-te como um peixe esperto na mão; quer sobreviver, e sabe que na tua posse será consumida. Assim é a curiosidade, tentando fugir, de escamas a brilhar, em direção a um último fascínio. E, como um peixe moribundo na mão — serás pescador, comerciante, marinheiro? —, algo nesse ímpeto levanta a repulsa na tua garganta, e ao mesmo tempo uma vontade animalesca de te segurares àquele momento.
Não largas das dúvidas. No entanto, com cada passo, aumenta o mistério; em cada corredor, surge uma outra maravilha.
Maravilhas! Nunca viste tais coisas. O teu percurso repete-se em surpresas. O estranho paraíso onde te mexes, sem passado e de futuro incerto, é feito de muitas salas, cada uma mais cheia de cheiros estranhos, perfumes antigos, uma presença de pó adocicado que é a única constante em todas as divisões contíguas.
Uma galeria: apenas de retratos de mulheres lindas, todas trajando o mesmo vestido, coroadas com a mesma grinalda de camélias alvas; todas elas com faces diferentes, e lágrimas nas faces.
Dois passos velozes, a porta fechada atrás das tuas costas por sua própria vontade, e encontras-te num outro espaço, curiosamente semelhante a uma sala de troféus — serás rei, atleta, diretor ou funcionário de um museu? Diversas armaduras brilham em tons de ferro bem-usado.
Os cavaleiros de traje medieval rodeiam um manequim sem cabeça, mas com uma coroa enroscada nos ombros, estes envergando um manto tão longo e tão belo que os teus olhos têm dificuldade em decidir em que ponto é que o preto das bainhas de pelo de marta se separa das sombras volumosas. A única mão do rei decapitado levanta um cálice de cristal vermelho; e, no seu interior, uma água estranha e rara, a brilhar como mercúrio vivo.
Afastas-te, enervado com a perfeita calma das armaduras vazias e do manequim real.
As falsas borboletas não são a tua única companhia. Mais do que uma vez, ao virar a esquina de uma ala, advinhas um corpo na periferia do olhar. O sangue do teu corpo dói de frio com a suspeita de vários olhos, estranhos braços, uma inteligência paciente.
É agora, e só agora, que a tua garganta se fecha num grito silencioso. Começas a correr e só paras quando chegas a outra sala, com outra porta protegendo-te — ou aprisionando-te dentro de um novo quarto.
Um belo quarto, este: uma sala de tesouros, iluminada por candelabros cujas chamas douradas nunca tremem. A sua luz ilumina muitas joias guardadas em baús semiabertos, alguns mais pequenos do que o dedo mais pequeno da tua mão e outros quase tão altos como tu. Todos os baús prometem uma profundidade de veludos cansados e sedutores, vislumbrados através de uma tampa que se baixa, veloz como uma boca esfomeada, quando lhe tentas tocar. Teria comido o teu pulso inteiro, se o receio não te fizesse tão veloz.
Seguras as mãos contra o corpo, prometes a ti mesmo que não irás tocar em nada e manténs-te no encalço do fraco feixe de luz que vem das lâmpadas amarelas.
Caminhas entre estantes mais altas do que as paredes, entre corredores iluminados pelos ossos fluorescentes de criaturas subterrâneas, dinossauros com traços mais fantásticos do que plausíveis.
Avanças sempre sem saber o que procuras, sem saber como voltar atrás. Queres parar, fugir, retornar a um mundo para lá destes caminhos abafados, onde o soalho range, mesmo quando não o pisas, e a luz enfraquece enquanto avanças.
Os pés traem-te, impelidos, possuídos pela curiosidade. Não podes parar; o teu corpo não obedece. E, mesmo que obedecesse, as portas, uma vez fechadas, não voltam a abrir-se.
Se existem portas para escapar deste palácio do extraordinário, terás de andar muito para as encontrares, e a convicção da fuga esfria em ti, atordoada por um fascínio agudo, mais alto do que a maioria das sensações que já sentiste na tua pequena vida de pequenas vontades — qualquer vida que ela seja. Deixaste essa certeza muitos corredores atrás, comida pelas traças que mordiscam os cantos dos pergaminhos amarelos e que, com tanta dificuldade, enxotaste dos teus cabelos.
O caminho estreita-se. A próxima passagem não oferece alternativas — apenas uma única e pequena portada, coberta por um cortinado de um material demasiado ondulante para ser veludo, demasiado quente para ser cetim. Em frente, encontra-se outra grande câmara, longa e asfixiante, sem saída e sem iluminação que não a de várias lâmpadas alinhadas em estantes.
Lâmpadas, não — jarros. Dentro deles, brilha um líquido fosforescente, parado, e dentro de cada jarro há um olhar ao teu encontro, um horror tão parecido como o teu, vivazmente conservado.
Tropeças nos teus próprios pés, desesperado, procurando, procurando, fingindo, com pouca convicção, que, entre esta coleção de maravilhas naturais e artísticas, não encontrarás o retrato mais macabro: uma cabeça embalsamada perfeitamente preservada — a tua.
Não conheces o teu reflexo, não podes ter a certeza. Mesmo assim, vasculhas em todos os cantos — sempre, sempre com a impressão de que algo te observa, que se aproxima, que continuará a aproximar-se se não encontrares a tua cara.
Vieste em busca de algo. Agora, temes ter encontrado o que procuravas.
SOBRE A AUTORA
Maria Duran
Maria Duran é uma lisboeta de 25 anos. Completou mestrado em História de Arte e Património pela Faculdade de Letras, e pós-graduação em Curadoria de Arte. Sabe demasiados factos sobre casas do século XIX e tesouros frágeis. Tem publicado poesia em várias revistas americanas e portuguesas.