Guia

de Liliana Duarte Pereira

 

Mónica é alta e entroncada. Tanto sorri como fecha o rosto quando alguém se recusa a cooperar. Há dias em que traja de amarelo e outros de preto, depende dos acompanhamentos que tiver agendados para o dia. Já lhe falta é a paciência para as exigências dos passageiros. Deve ser do tempo em que vivemos, são todos mais mesquinhos e manipuladores. Acham sempre que interessa alguma coisa aquilo que têm a dizer, como se a bagagem já não tivesse sido pesada. Os bilhetes são emitidos e ela só tem de os acompanhar à porta de embarque, mas há sempre uma criatura que não colabora com os serviços. Recusam o destino e querem alterar o bilhete, até parece que isso faz alguma diferença. Aqui, só há uma opção: têm de ir e ponto final. E mais, vão para a porta que lhes é indicada.

Ainda ontem, bateu de frente com uma mulher de meia-idade. A emproada queria a emissão de um novo bilhete, parecia descontente com o destino atribuído. Era daquelas com memória curta. Teve de a arrastar pelos cabelos. Atrasar a partida estava fora de questão! E era bom que usasse o tempo de caminho para reflectir, pois a jornada seria de ida e volta as vezes que fossem necessárias.

De seguida, veio Sandro, jovem e animado. O ar festivo não coincidia com o destino quente, mas ele disse-lhe que sempre adorou o Verão e nem foi preciso acompanhá-lo. Foi a correr para a porta correspondente como se fosse de férias para um spa.

Às vezes, não muitas, apareciam os chamados «desenxabidos», esses vinham serenos e cheios de vontade de partir. Por isso, raramente reclamavam.

Mónica pensava muitas vezes como seria se um dia destes fosse de férias. Eram merecidas, mas pior ficaria o mundo. Tinha de reconhecer que, apesar das chatices com os inconformados, nada pagava ver a reacção das pessoas à sua presença. Como a imaginam velha e encurvada, acham que estão a sonhar. O medo só ataca quando chegam às partidas.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Liliana Duarte Pereira

Liliana Duarte Pereira, nascida a 30 de junho de 1986, é licenciada em Política Social através do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Sempre quis preparar os mortos para os seus funerais, mas não vingou. Tem fobia a pessoas falecidas e a portas entreabertas. Gosta de animais, de fazer doces, de rir de coisas mórbidas e de escrever.

Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Rua Bruxedo (2022) e Sangue (2022).

Venceu o Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto (2022) com «O Manicómio das Mães», da antologia Sangue Novo.