Impressões

De Nuno Amaral Jorge

 

A imagem no ecrã permanecia imóvel. O rosto, bonito, ladeado por um cabelo que se insinuava como uma moldura perfeita, irritava-o.

Colocou o indicador no local que solicitava a impressão digital. O ecrã teimava em anunciar o telemóvel «trancado» e, pela enésima vez, sentiu-se tentado a partir o aparelho em pedaços. Mas não era capaz. Como não era capaz de sair de casa sem polir a maçaneta da porta durante cinco minutos, ou ensaboar-se três vezes no banho. Como todos os dias. Duas vezes por dia. Sem excepções.

Remexeu na mala. O som era algo parecido com estalidos baços, como o chocalhar de dados sujos num pequeno saco de plástico. Nenhum deles servia. Elas eram parecidas, mas não eram ela. O rosto. O sorriso. O cabelo que adejava. A distância tão enganadora. Tudo o que estava ali tão à mão. Literalmente.

O seu indicador não abria aquela porta teimosa. De novo.

O autocarro sacolejou e ele assustou-se. O telemóvel quase caiu da mão. O rosto quase se apagou. Mas não. Não desta vez. Não se apagaria sem ele a abrir. Controlou-se. Passou a mão na face barbeada. Olhou novamente para o rosto no telemóvel.

A última não tinha sido ela.

Tinha de ser. Só podia.

Mas não era. Não destrancava o telemóvel, logo, não podia ser ela. Mesmo que o cabelo fosse tão parecido. Que os olhos, cheios de lágrimas, de medo, de dor, da incompreensão que ele lera nos animais quando era mais novo, fossem tão parecidos. Era nessa altura que mostravam a sua verdadeira natureza.

Seguiu-a por entre as ruas e prédios já ensombrados pela hora de Outono. As árvores faiscavam o sangue e fogo das folhas, anunciando o ocaso do ano. O cenário era bom porque a distraía. E ele tinha de ter cuidado.

Quando ela entrou no prédio, acompanhou-a. O ar pacífico, os óculos redondos limpos, a roupa inofensiva e os modos irrepreensíveis levaram-na a sorrir ao manter a porta aberta, e a virar-lhe as costas quando ele passou.

Entraram ambos no elevador. Ele sentiu-se alegre e aproximou-se, encostando uma longa e afiada tesoura de talhante às costelas dela. Os olhos da mulher abriram-se com a surpresa. Um homem tão ordeiro, tão simpático, tão… inofensivo.

Ele olhou-a novamente. Exibia o mesmo sorriso simpático, contido e respeitoso, próprio de um gerente de banco prestes a vender um seguro ou de um empregado de loja competente.

Saíram do elevador. Era já noite. A escada do prédio estava silenciosa como o interior inexplorado de uma caverna. Só os sons das passadas no chão denunciavam movimento.

Sorte. Ele tinha sorte.

A mulher chorava em pleno terror, já que a tesoura passara a fase da ameaça, fazendo uma punção na pele junto a uma das flutuantes do lado esquerdo. Dentro da camisola, um fino fio de sangue percorria a pele. Ele sorria. Sorria sempre. Só deixou de sorrir quando viu a maçaneta. Suja. Impressões digitais. Mas não as que ele queria. E não só. Eram demasiadas. Miúdos do prédio, a porteira. Um nojo. Uma confusão.

Entraram na casa dela, e ele não perdeu tempo. Vendou e amordaçou a mulher. Prendeu-a a uma cadeira, usando a corda que carregava consigo na pequena mala, onde também guardava a carteira, um livro, a tesoura e… outras coisas.

Tratou logo de fazer a recolha. O som da tesoura a cortar os dois indicadores da mulher, um de cada vez, era semelhante a um estalido húmido. Soava como se alguém estivesse a partir fios de esparguete, enrolados num guardanapo molhado.

Ela gritava, mas a mordaça continha-a. As têmporas eram rasgadas por veias inchadas, ao mesmo tempo que a pele e os olhos tapados se injectavam do mesmo vermelho que pintalgava o chão da cozinha.

E ele nunca parara de sorrir. Era desta vez. Tinha de ser.

Faltava apenas uma coisa.

Limpou a tesoura com álcool. Depois, aspirou a zona onde estivera, e, com um pano e álcool, limpou todas as superfícies em que tinha tocado — as de que se lembrara —, bem como os dois dedos amputados. Arrumou-os em duas saquetas de plástico de cor azul escura.

Na cadeira, a mulher debatia-se com a dor e o medo. As lágrimas corriam. Não fora a mordaça e ela gritaria o suficiente para acordar o prédio inteiro.

Ele saiu sem uma gota de sangue ou suor. Exibia um enorme sorriso que, uma hora depois, se transformara em fúria e numa tal ansiedade que lhe causava uma psicossomática falta de ar. Os dedos não serviam.

Tomou banho. Ensaboou-se três vezes. Deitou-se. Dormiu um sono sem sonhos. Como sempre.

No dia seguinte, deitou os indicadores, já secos, para um recipiente cheio de uma solução que comprou a um taxidermista. Conservá-los-ia com aquele aspecto orgânico, mas sem apodrecimento ou deformação, a não ser a da secagem e escurecimento provocados pelo tempo e passagem da morte nos tecidos.

Olhou para os pés, mortificado, enquanto uma das mãos mexia no interior da mala. A outra mão tocava no telemóvel, como se, por milagre, pudesse ser desbloqueado só pela força da vontade.

O autocarro parou. Entrou uma mulher. O cabelo, louro, dançava junto ao rosto com a graça de algo que podia mover-se autonomamente. O sorriso era natural, largo e brilhante.

Ele arregalou os olhos e sorriu. Um sorriso do Sol que o céu não tinha.

Pouco depois, ela saiu do autocarro. Ele, o homem ordeiro, seguiu-a.

Ela caminhava com um andar seguro e feminino, dando a ilusão perfeita de vida ao cabelo louro que adejava junto ao rosto e ombros. E sorria. Sorria enquanto olhava de soslaio para o homem pacato e pensava na invisibilidade. Sorria enquanto acariciava o metal frio da pistola que tinha dentro da mala. Mas, acima de tudo, sorria ao pensar no quão fantástico era o avanço da tecnologia no que dizia respeito às próteses ortopédicas… e às facas afiadas a laser.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

 

SOBRE O AUTOR

Nuno Amaral Jorge

Nuno Amaral Jorge nasceu em 1974. É jurista, fotógrafo amador e escritor freelance, além de bibliófilo. É guionista no projeto de banda desenhada portuguesa Apocryphus, desde a sua primeira edição, em 2016. Em 2018, publicou um livro de contos infantojuvenis chamado A Joaninha ao Contrário e Outras Histórias, e em breve será publicado um segundo volume de contos, ambos pela editora Ideias com História. Em 2019, publicou um romance chamado As Três Mortes de um Homem Banal,  pela Editora Planeta e, em 2020, participou na antologia de contos na edição comemorativa dos 30 anos da APAV, À Roda de uma Vontade. Em 2022, publicou um conto na antologia Os Medos da Cidade, da Editorial Divergência e pretende acabar um romance que se encontra «a meio», bem como um conjunto de contos de terror e fantástico. Stephen King é a sua referência.