Inferno
de Patrícia Lameida
«Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação do Inferno?»
Mateus 23:33
No princípio, havia luz. Pulsátil no seu total, sentiu-se só. E da luz se fez criação. Criou a luz a sua antítese, a escuridão, e achou que a escuridão era boa. Entre trevas e luzência, criou matéria, e da matéria se fez líquido e sólido, e achou que tudo isto era bom. Sentiu a luz francos ímpetos de novidade e fez a forma alada, luminosa no seu cerne, à sua semelhança. E chamou-lhe anjo. Repetiu a inovação e fez de um anjo vários, rodeando-se de uma irmandade que a refletia, à luz primordial, essência de tudo. E tomou para si nome, definindo-se como o princípio e o fim de tudo o que criara, e chamou-se Deus. E Deus criou, por seis dias labutou, pintando de claro e escuro a matéria que ia moldando. E no final, ao sétimo dia, Deus descansou e decidiu apreciar a sua obra, rodeado das claridades aladas que, como ele, olhavam do alto a matéria feita vida autónoma, mutável por arbítrio livre, inesperada e recreativa.
Chamou humanos aos amaldiçoados com a possibilidade de escolha. Cresceram e multiplicaram-se povoando a terra e navegando os mares. E da escolha fizeram inteligência e da inteligência inventaram a consciência, levados pelo impulso da mudança. Inspirados pelo dia e pela noite, definiram bem e mal e assentaram nestes a consciência experimental que cimentaram ao longo de gerações.
E tudo isto aconteceu sob a vigilância de Deus e dos anjos, e com Deus entre os homens cresceu, tendo anjos como guias se construiu. Pois Deus é incapaz de não criar. Experimenta, manipula, castiga e santifica, desmonta certezas e oferece impossíveis. E assim passam os tempos.
A nós, anjos, crescem-nos sincronias com os seres que observamos. Atuamos por adoração ao Criador e crescemos com a exposição à comoção, ao sentimento que vem dos homens e que em nós reverbera. Vemos sentir e sentimos com os gentios, cristalizando-se sensações que nos definem. Somos por Deus enviados como agentes de ordem e proteção. Nunca imunes à emoção que a tantos de nós transformou…
***
Naquele tempo, eram os homens vis. E da sua vilania, crescia malvadez. E entre eles, conseguia contar Deus pelos dedos de uma mão os que recordavam a caridade. Eram os dias iguais, pintados a lágrimas e nódoas negras, embalados por gritos e injúrias, gargalhadas cruéis e lascivas. Tornaram-se nossos dias monótonos, semelhantes entre si na miséria humana que víamos, desviando-se nossos olhos, feridos de tudo. E Deus achou que bastava e que a Humanidade deveria ser reciclada. E ele decidiu e nós executámos, pois seus desígnios são para nós ordens e razão de existir. Escolhidos os poucos que deveriam ser poupados, mandou meus irmãos na anunciação da escolha envolta numa mensagem de fim. Elegeu dois entre tantos de nós, na minúcia da concretização que antecipava conseguir. E foram Agla — alma pura, vincada pela bonomia das crias — e Rahab — espírito livre, salgado pelas águas dos mares, que a mando do Criador ajudou a moldar.
Foram meus irmãos até à porta de Ló e de sua família. E foram recebidos com cortesia e carinho, acolhidos no seio dos homens que Deus queria poupar. Contam meus irmãos a Ló a sua fortuna — poupado seria entre a sua comunidade, levando consigo os seus para reinventarem os homens. E Ló ouve e percebe, reconhece meus irmãos como angelicais e agradece em prece sua sorte e seus mensageiros.
Alonga-se a mensagem entre risos, comidas acarinhadas e memórias exaltadas de tempos benignos. Na tranquilidade da partilha, ouvem a turba em aproximação. Insistentes e brutas batidas chamam o anfitrião à porta. Agla está entre os pequenos, criando risos de pasmo com finos fios de luz doirada que faz escorrer entre os dedos. É Rahab quem segue Ló até à porta. Por insistência do homem que tão bem os tratou, mantém-se resguardado e assiste de perto ao que de longe tem evitado ver. Homens vários, armados de sentimentos escuros, pressionam Ló a entregar os visitantes. Pois forasteiros devem ser domados, espancados e sodomizados. Para prazer dos que ali imperam e em coerência com a dinâmica de humilhação e dominância vigente, é dever de Ló assim proceder. Há que ceder os estrangeiros!
Pugna o homem por misericórdia: «Não, meus amigos! Não façam essa perversidade!». O intento é descartado em escárnio.
Tenta Ló o suborno: «Tenho duas filhas ainda virgens. Oferto-vo-las para que se sirvam delas como bem entenderem, mas nada façam a estes homens que acolhi sob a proteção do meu teto!». Caem as pretensões com o aumento da pressão das gentes sobre a porta. Tentam entrar e vencer o velho pela força bruta que o subjuga.
Rahab vê-se invadido pela raiva, pelo desdém, pela lascívia e pela maldade que emanam. Entra em si, com violência, tudo isto e muito mais. E em si, Rahab muda, sabendo-se como aqueles homens, capaz do mesmo, ansiando a concretização de todas estas novas leis. Liberta da luz que o alimenta focos que orienta aos olhos dos que são agora seus semelhantes. E a multidão abranda e geme e em cegueira dispersa. Ló ajoelha-se aos pés de Rahab: «Sois milagre na Terra. Graças a vós e ao Deus que vos mandou em meu socorro!». Decidem os anjos que a missão está cumprida. Que se fossem Ló e sua família, pois com a alvorada chegaria o fim.
Tudo isto aconteceu. Tudo isto Deus viu, rodeado de testemunhas silenciosas e expetantes, vendo dois irmãos entre homens torpes, meros objetos de manipulação, que inconsequentes nos ameaçavam. O retorno de Rahab repleto anunciou sua modificação. E foi Rahab escolhido, de Rogziel acompanhado, para a concretização do aguardado genocídio. Esperam, justiceiros, que a manhã se anuncie. Rahab renascido e Rogziel — ira de Deus feita anjo, moldada no meu irmão da punição.
Descem sobre os homens e anónimos entre eles circulam. Passam e veem: ao sedento é negada água, prontamente despejada em escárnio; crianças roubam, espancam e cospem sobre um velho moribundo; um homem assalta uma casa tomando mulher e filhas alheias, fazendo da violência forma de luxúria que sente completa apenas depois de haver sangue vertido; punhais brilham em demasiadas mãos, facilmente ferindo como forma de diversão.
Estando entre porcos, cresce em meus irmãos a necessidade de cumprirem o incumbido. E por adoração ao Senhor o fizeram. Em todas as casas, foram portas e janelas cerradas. Ascende do centro da Terra o calor magmático que a Luz criadora alimenta. E as casas derretem lentamente e ardem pela base, queimam com as paredes todos os que no interior foram enjaulados. E ouvem-se gritos desesperados, apelos de misericórdia entre pragas afogados, e souberam meus irmãos que aquilo era bom.
Aos homens espalhados pela rua, de pés queimados à procura de salvação, iam meus irmãos distribuindo punição. Rogziel abraça-os antes de os desmembrar. Apraz-lhe sentir músculos, ligamentos e ossos separarem, largando sangue como seiva que nutre a terra para novas vidas. O trabalho é lento e metódico, não elegendo vítima. Limita-se a separar em partes o próximo que dele se aproxima.
Já Rahab escolhe. Procura o homem que viu negar água ao sedento. Separa-o do solo ardente para lhe rasgar a garganta, os dedos feitos garras, satisfazendo com sangue a gana de escárnio. Às crianças que viu roubar e maltratar um idoso moribundo, arranca as mãos à dentada, sentindo escorrer pelo queixo a justiça de que fora delegado. Com o violador, demorou-se, contando em finas lascas o órgão de que este se havia servido para infligir dano. Fê-lo com lentidão, nomeando a cada lâmina de carne os nomes de suas vítimas. Aos faquires, por diversão, fatiou toda a pele em finas tiras, esfregando entre elas o sal que de outros tempos lhe escorre pelos poros. A todos os que por ele passaram, Rahab teve o cuidado de suspender em postes ou chaminés, livrando-os da misericordiosa morte entre as chamas que brotavam da terra.
Tudo isto Rahab cumpriu com parcimónia e cuidado, acarinhando a função que lhe havia sido confiada. Tudo isto vimos nós. Tudo isto viu Deus, e Deus achou que era bom. E em celebração, fez chover explosões de enxofre que coloriram a cena com o cheiro do pecado ali sepultado, por meus irmãos exorcizado. Horrores também testemunhados à distância pelos poucos escolhidos, em segurança resguardados sob a proteção de Agla. Na memória, ficar-lhes-á guardada a imagem de um antro em chamas consumido, por enxofre coroado, como condenação às almas impuras, prometido. E a esse antro deram nome:
Inferno.
Anteriormente publicado em: https://patricialam3ida.wixsite.com/inferno-hell
SOBRE A AUTORA
Patrícia Lameida cresceu entre livros, aventuras e novos mundos. Escreveu, desde cedo, poemas e pequenas histórias que esqueceu com o tempo. A vida divergiu do mundo das letras durante a sua formação e entrada no mercado de trabalho. Não tardou a reencontrar esta paixão, mantendo um blogue de crítica literária durante vários anos e escrevendo pequenos textos, alguns dos quais poderão ser encontrados em antologias como o Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas e Não Vão os Lobos Voltar e em revistas literárias como a Palavrar.