Inimiga Imaginária

de Liliana Duarte Pereira

 

A primeira vez que vi a Crocante, tinha seis anos. Estava de pé, encostada ao meu guarda-vestidos, de cabeça baixa, fixa na ponta dos dedos dos seus pés descalços. Chamei-lhe Crocante porque os ossos dela estalavam conforme se mexia. Quando se endireitou, vi que lhe faltavam os olhos, o nariz e a boca. Ainda assim, a voz dela saía de um lado qualquer e entrava pelos meus tímpanos adentro, aguda como quando raspamos os talheres num prato.

Disse-me que ia ser a assistente dela e que devia cumprir todas as tarefas que me desse. A primeira foi encher a banheira de água bem quente e meter lá dentro o Sr. Bigodes. Pareceu-me bem. Ele precisava de uma grande banhoca. Não sei porquê, mas ele ficou aflito e debateu-se até adormecer. No rosto vazio da Crocante, nasceu um olho. O direito.

A segunda tarefa foi ver as vistas com a minha irmã. Abrimos a janela e empoleirámo-nos para ver bem, mas a minha irmã desequilibrou-se e caiu. Depois disso, mudámo-nos de um sétimo andar para uma cave. A Crocante ganhou o olho esquerdo.

A terceira tarefa foi dar ao meu pai um doce que fiz na escola. Eu não sabia que ele era alérgico aos amendoins. Ficou sem ar. E a minha mãe nunca se perdoou por não ter à mão uma caneta qualquer. Ainda hoje não sei o que ela queria escrever, mas sei que foi assim que o nariz brotou em posição central, na face quase completa da Crocante.

A quarta tarefa vou fazê-la hoje. Tenho de tomar todos os medicamentos que estão no armário da casa de banho. A Crocante disse-me que assim nunca vou ter doenças, e tenho a certeza de que, em troca, ela vai receber uma bela boca.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Liliana Duarte Pereira

Liliana Duarte Pereira, nascida a 30 de junho de 1986, é licenciada em Política Social através do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Sempre quis preparar os mortos para os seus funerais, mas não vingou. Tem fobia a pessoas falecidas e a portas entreabertas. Gosta de animais, de fazer doces, de rir de coisas mórbidas e de escrever.

Integrou as antologias Sangue Novo (2021), Rua Bruxedo (2022) e Sangue (2022).

Venceu o Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto (2022) com «O Manicómio das Mães», da antologia Sangue Novo.