Iniquidade

de Paula Campos

 

Durante aquelas três semanas, não houve dia nem noite. Apenas a bruma da insanidade. Ou não. Caber-lhe-á a si, leitor, ser juiz e carrasco. De mim e da assassina.

Mal se despediam as últimas visitas já os carrinhos raspavam o gasto chão de linóleo vermelho. Enquanto as auxiliares nutriam os velhos, um enfermeiro vinha cobrir-me com a maldita padiola dos campos de guerra e virar-me de barriga para baixo. Um frango no espeto — era certamente a minha imagem. Duas horas com a testa espremida no ferro escassamente envolvido em ligaduras. Ranho, saliva e lágrimas a escorrerem para o chão, num local cuja língua pouco conhecia e onde, naquele novembro, acordara sem corpo, mas com a mente tortuosamente lúcida.

Por volta das 21 horas — aprendi a apurar o meu ouvido de tísico para contar o tempo —, a algazarra amainava. Novamente de barriga para cima, na tranquilidade forçada pelos medicamentos do pós-jantar, caía noutro pesadelo. As rachas do teto ganhavam vida a pouco e pouco. Esguias figuras negras contorciam-se em danças sensuais, bamboleantes, tumultuosas. Nada que alguma vez tenha presenciado na minha Guiné, de onde nunca tinha saído até ter vindo estudar, sozinho, para este país gelado.

Era sempre despertado pelos mesmos gritos. Os velhos iam e vinham, mas os gritos eram os mesmos. Ficavam impregnados nas paredes. Os que iam chegando não percebiam que gritavam dores alheias.

Na décima noite, despertou-me um velho que se esgoelava.

E, então, voltou a acontecer…

A princípio, era um matraquear remoto. Depois, descompassado. Um passo sim, um passo não; um sim, um não. Vagarosamente, iam-se tornando cada vez mais audíveis, acompanhados de um cheiro pútrido, de morte. A enfermaria voltava a mergulhar no silêncio. Cada um engolia as suas dores. Só o novo velho continuava a gritar.

Pelas portas, ouvia-se o som distante da televisão da sala das enfermeiras. Em noites como aquela, eram cegas, surdas e mudas.

Como das outras vezes, o vulto parou por uns segundos ali. Mal o entrevia, porque só conseguia mover os olhos e a boca. Esta, contudo, manteve-se sempre fechada. Os olhos transformavam-se numa pequena fenda. Sobreviver.

A finíssima agulha passou pelos pés da minha cama, segura numa mão albina. Foi deter-se junto do velho, que entrara naquele dia e ainda não sabia que não podia gritar de noite. Nem nunca o saberia. Tal como os outros três antes deste, nas minhas terceira, quinta e sétima noites.

O velho calou-se. E todos nós, restos de gente, o imitámos.

A manhã seguinte foi igual às minhas terceira, quinta e sétima manhãs. Como quem vai pôr o lixo à rua, a enfermeira-chefe orientou a operação de retirada do cadáver. Só depois abandonaria o serviço.

Apesar de o acontecimento se ter repetido mais três vezes enquanto ali permaneci, nunca ninguém o comentou. Nós, indefesos, vulneráveis. As visitas demoravam-se pouco. Filhos de velhos inúteis, estorvos que «mais valia Deus Nosso Senhor levá-los». Enfermeiros e auxiliares não tinham tempo para ouvir indignidades.

Na minha terra, os velhos e os incapazes também morriam. O sofrimento físico era maior, mas as rezas e o choro genuíno da família reconfortavam a partida.

A minha última noite naquele hospital é a memória mais vívida que guardo.
A rapariga tinha chegado de manhã. Percebi que era uma miúda ainda mais nova do que eu. Toxicodependente. Imaginei-a magérrima, de olhos turvos e faces encovadas. Balbuciava sons ininteligíveis. Rezei para que dormisse tranquila. Por ela e por nós.

Não foi assim.

Naquela noite, os rituais mantiveram-se. Devia ser já madrugada. Não palrava a televisão, não bulia uma folha, não ressoava um carro, não gemia um velho. Um silêncio que eu nunca sentira, nem quando dormia na savana. Como nos filmes em que, depois de uma catástrofe, um homem se vê só no planeta. O silêncio que prenuncia uma tragédia.

Finalmente, o grito. Rouco. Profundo. De animal ferido, que arranhava as paredes, rasgava as almas. Silêncio. Cascata de gritos que brotaram da garganta da rapariga, grades da cama que bradavam, ansiando por se libertarem dos imobilizadores que prendiam os frágeis pulsos. Aterrorizados e calados, nós, os desvalidos, os despojados de mundo.

Então, recomeçou. A marcha arrastada, a espera angustiada, o desespero pelo destino da rapariga. Ao ouvir o passo estacar junto da enfermaria, baixei um pouco as pálpebras para ver passar a cintilante linha prateada que poria fim aos gritos. No entanto, nem agulha nem saltos mancos. O monstro que não se vê engrandece. Cerrei os olhos. Onde estaria? Porque não o via? Porque não o ouvia? Que mudança era aquela? A rapariga tinha-se silenciado. Teria pressentido o perigo? O mundo novamente parado. Onde estaria? O meu pânico foi ganhando espessura à medida que o cheiro se entranhava nas minhas narinas, na boca, nos ouvidos. Senti no rosto as gotículas geladas, ácidas.

Prestes a sucumbir, abri os olhos. Ei-lo! O monstro. Junto à minha cama, a agulha destilava o líquido que poria fim à minha vida, impunemente. Descia sobre o meu braço. O coração ribombava ao ritmo dos tambores dos djembê. Despedi-me dos meus dezoito anos de vida, onde tão pouco coubera, e preparei-me para receber o veneno nas veias.

Num golpe de asa, porém, o meu destino mudou. Pela sujidade dos vidros, penetrava uma ténue luz, que se foi intensificando, ao mesmo tempo que os ruídos do início de dia. Em uníssono, os despojos das camas da enfermaria gritavam. Era o mundo a retomar o seu ritmo. Num ápice, seringa e vulto desapareceram.

Pensei que ganhara mais um dia de vida, mas depressa perceberia que não seria o último: mudar-me-iam de hospital naquela manhã.

Ao sair para a ambulância, a alma negra aproximou-se de mim. Tinha-me esperado ali. Ver-lhe o rosto pálido, quase seráfico, à luz do dia, fez-me duvidar da minha sanidade. Teria tudo passado de uma alucinação? Respirava de alívio quando a enfermeira-chefe me sorriu, de dedo indicador no nariz, em sinal de silêncio.

Quarenta anos depois, é a si, leitor, que peço julgamento e punição para o meu silêncio cobarde. E para a assassina. À sua mercê, leitor.

SOBRE A AUTORA

Paula Campos

Paula Campos nasceu em Coimbra e é professora de Português.

Os livros fizeram parte da sua vida antes de saber ler. Por todo o lado, eram folheados com respeito.

Depois do espanto de aprender a juntar palavras, passaram a ser companheiros de todas as horas. Quando já não chegavam os que habitavam a casa, tornou-se visita frequente da Biblioteca Municipal de Coimbra, no antigo Mosteiro de Santa Cruz, um espaço digno de uma história de terror.

Participa em tertúlias de poesia e em apresentações de livros, publica em jornais, revistas e coletâneas, organiza atividades literárias em bibliotecas e feiras do livro.