Janeiro

De António Garcês

 

Janeiro é o primeiro mês do ano. E como todos os Janeiros desde que a mãe morreu, o meu pai celebra o Ano Novo sempre da mesma maneira. Sinto as vibrações de uma tempestade — não… um tufão — a subir escada acima com toda a potência que um tufão tem e que faz o meu corpo suar e tremer.

Tum. Tum. Tum. Tum. Tum. TUM. TUM. TUM

Não consigo perceber o que é mais alto: as batidas do meu coração ou o tufão que se aproxima do meu quarto.

Sabia o que estava para vir. O tufão pontapeia a porta com toda a força, ao ponto de partir a maçaneta. A porta bate num estrondo contra o armário onde tenho os livros e os brinquedos, fazendo tudo cair ao chão. O tufão dirige-se a mim, com fúria nas palavras:

— Feliz ano novo, filho duma puta — leio-lhe nos lábios enfurecidos, enquanto ele agarra em mim pelo colarinho do pijama. Prega-me uma tareia sem piedade e sinto o meu corpo a cair no chão. Parte-me o nariz, racha-me os lábios e abre-me a cabeça. A única coisa que consigo cheirar é o sangue que me jorra do nariz e da boca. Tenho a visão vermelha e inchada. Com toda a minha força, tento não chorar. Se chorar, ele vence.

Fico com a cara irreconhecível. Se o espelho da casa de banho pudesse falar, diria que está a olhar para um estranho. Lavo a cara e limpo-a com uma toalha já bastante ensanguentada. É só mais um janeiro.

Antes, não era assim. Antes, quem levava todas as tareias era a mãe. Até aos meus 5 anos, ouvia com medo, atrás da porta, sem compreender bem o que se passava do outro lado. O tufão gritava cada vez mais alto. A mãe chorava cada vez mais alto. Com os gritos, vieram as agressões — os murros e os pontapés. As noites pareciam não ter fim. E depois, ela morreu. Porque é que ela teve de morrer? Era ela que merecia as tareias, não eu.

Olho pela janela e vejo adultos a celebrar e crianças a brincar. Uma hora e meia passava desde o Ano Novo e consigo ver pessoas a acender fogo-de-artifício que rebenta num espetáculo glorioso no céu. Antes, adorava ouvir o fogo-de-artifício. A tareia que levei há dois anos deixou-me surdo. Nas minhas mãos, vejo a corda de saltar, o único pertence que me dá alegria e conforto. «Pertence a Bernardo, nascido a 1 de janeiro de 1992», pode ler-se nas pegas da corda. Parabéns, Bernardo.

Mais um ano passou. Mais um ano a gozarem comigo porque não consigo ouvir. Mais um ano a reprovar porque não consigo concentrar-me nos estudos. Mais um ano a celebrar o aniversário sozinho. O único presente que recebo é a tareia que me mata aos poucos. Um lembrete como um alarme que só toca uma vez por ano. Filho de uma prostituta e de um velho jarreta que tiveram uma noite de onde eu nasci, o maior erro da vida dele — e a sua constante lembrança.

Baba e ranho sai de mim. Janeiro está amaldiçoado. O mês em que eu nasci. O mês em que a minha mãe morreu. O mês do lembrete anual e da tareia… 

 

***

No dia 2 de janeiro de 2003, por volta das 10 horas e 15 minutos, um reformado senta-se na cadeira do jardim com o seu jornal. «Criança de 11 anos suicida-se com uma corda de saltar na madrugada de 1 de janeiro», lê-se na capa.

— Sombras de Janeiro, escuro o ano inteiro — suspira o reformado.

 

 

SOBRE O AUTOR

António Garcês

António Garcês nasceu em Setúbal, em 1996, e é licenciado em Engenharia Mecânica. Gosta de livros e filmes de todos os géneros, mas têm um carinho especial por terror, tendo sido uma cassete com o filme Alien a desencadear o gosto pelo género. Mais tarde, vieram os romances de Stephen King, que abriram portas para o mundo literário. Até hoje, já leu vários autores do género, mas está sempre à procura da próxima história. Estreando-se agora pelo mundo da escrita, só fica a questão de qual será o seu próximo conto.