Jorge

de Nuno Gonçalves

 

A primeira vez que te ouvi, perguntava ao espelho se este vestido vermelho, este mesmo que agora volto a usar, ainda me serviria.

Bom dia.

Foi o que disseste, embora fosse de noite. Voltei-me para trás, sobressaltada, mas soube logo que aquela voz grave não vinha de trás, nem de lado nenhum. Vinha cá de dentro.

Bom dia!

Insististe. E eu respondi-te, ingénua, em voz alta.

— Boa noite.

Tu riste-te, aquela gargalhada afiada que haveria de me assombrar nos meses seguintes. Perguntei-te quem eras.

Só quero ser teu amigo.

Chamei-te Jorge, para facilitar. Sabes, apesar do medo e da estranhez inicial, acho que me foste útil.

Quando me incentivaste a pedir um aumento…

Tu mereces, sabes que mereces.

…quando me ajudaste a fazer frente à Soraia…

Vais continuar a ser pisada por pés de cabra?

…quando me deste coragem para meter conversa com o Sérgio.

Bom de mais para ti? Ninguém é bom de mais para ti.

Foi esse o teu erro: o Sérgio. 

Ele apercebeu-se de alguma coisa, dos meus silêncios quando te ouvia, das dores de cabeça, das mudanças de humor. Tentaste afugentá-lo. Alimentaste grandes cenas de ciúmes, regadas a gritos e violência. E ele tolerava tudo, até decidir levar-me ao médico. Arrastar-me até ao médico. Lá, disseram-me o teu verdadeiro nome: Glioblastoma.

Jorge, o Glioblastoma, um tumor abraçado aos meus miolos.

Encolheram-te. Queimaram-te com radioterapia. Gritavas, e eu também. Por vezes, calavas-te. Outras, sussurravas.

Ainda aqui estou…

Os médicos quiseram cortar-te, arrancar-te de mim.

Hesitei. Temia que, se te removessem, também partisse contigo algo que me fizesse falta. A coragem. O orgulho, talvez. Mas acedi.

E cortaram-te.

Lembro-me de acordar. Tão oca, tão vazia, sem força, sem ímpeto. Sem ti, mas com o Sérgio. E comigo. Eu própria. De volta.

Ah, se me visses agora. Se visses como o vestido vermelho me assenta, como os meus olhos alcançam o futuro. Se me visses assim, feliz. 

O Sérgio vai pedir-me em casamento, acha que é surpresa. Surpresa tenho eu, pois em breve este vestido deixará de me servir. Estou grávida e nada pode-

Bom dia.


SOBRE O AUTOR

Nuno Gonçalves

Nuno Gonçalves devora livros há 30 anos. O prazer da leitura fez crescer a vontade de um dia ver as suas próprias palavras no papel, encadernadas, à espera de um leitor. O caminho escolhido foi outro, e a Medicina atraiu-o mais do que as Letras. Manteve a ligação à literatura, retomando os hábitos de leitura e dinamizando um blogue de crítica literária durante alguns anos. Depois de iniciar uma nova caminhada na escrita de ficção, venceu o prémio António de Macedo em 2022 e foi o finalista português do concurso de microcontos da EACWP em duas ocasiões (2022 e 2023).