Lavadeiras

De Inês Videira

 

Numa noite universitária qualquer, Carla saiu com as amigas e engravidou de alguém cujo nome não fixou. Ela, que seria a primeira da família com um curso superior. 

Imaginou o rosto da mãe a contorcer-se de desgosto. Sabia os sacrifícios que ela fazia para a manter na universidade, vivendo apenas do que cultivava para vender aos sábados no mercado e de pequenos trabalhos de costura.

Ainda que tivesse comprometido o futuro e a relação com a mãe para sempre, não teve coragem de abortar. Não contou a ninguém. Enfaixou o ventre e foi adiando para o dia seguinte a procura de uma solução, enquanto comentava como a vida universitária a fazia engordar.

No limite da sua gestação, no entanto, trespassada pelas dores, sabia que já seria impossível esconder o seu estado. Quer quisesse quer não, o bebé que crescia dentro dela ia nascer. 

Foi ter com a mãe, na esperança de que um pedido de ajuda no meio da aflição fosse suficiente para ser perdoada.

Entre gemidos, e vergada sobre si mesma, admitiu que estava grávida.

— Criei uma filha para ser uma puta?! — gritou a mãe. — Alguém sabe?

Não era para aquilo que Anabela criara uma filha e a tinha posto a estudar. O que seria dela? Falada, desgraçada. Nenhum homem de bem iria querer casar com ela.

A solução parecia-lhe óbvia: a filha ia parir em casa. E ai dela se gritasse. Ninguém podia saber daquilo.

Foram horas até que a menina finalmente nascesse. A noite estava já escura. Era uma boa hora.

Depois de obrigar a filha a amamentar o bebé, para garantir que ele não chorava no caminho até ao ribeiro, arrancou-lho dos braços e embrulhou-o num trapo velho, determinada a resolver o problema como uma ninhada de gatos se tratasse. Carla, com os lençóis ensanguentados entre as pernas, e de cabelos húmidos colados ao rosto, não teve forças para a seguir. Deixou-se cair sobre uma almofada, suplicando sem palavras a um deus qualquer que lhe acudisse e lhe salvasse a filha.

Anabela equilibrou-se nas pedras do rio de saias arregaçadas, conforme a água se tornava mais funda. Ia afastando as canas e as trepadeiras de flores roxas, com a água fria a engolir-lhe as pernas a cada passo. Tinha de encontrar um lugar onde ninguém fosse dar com aquela coisa que não era sua neta. 

No momento em que a noite é mais escura, ia já a meio do ribeiro. Percebeu, então, que não estava sozinha. Primeiro, viu um pequeno ponto de luz. Depois, uma velha curvada sobre um lençol branco que lavava, alheia à sua presença. Ia murmurando para consigo uma ladainha que Anabela não conseguia entender, e por isso pensou tratar-se de alguém com um mal da cabeça, que estivesse a confundir a noite com o dia.

Continuou o seu caminho, com a bebé a começar a mexer-se no colo. Tinha de se despachar antes que ela acordasse. Ou, talvez, se usasse uma das pedras que tinha ali à mão, nem precisasse de a afogar. E assim não tinha de andar a correr.

Então, mais duas mulheres. Os lençóis que lavavam estavam mais sujos, mostrando manchas escuras que a água parecia não retirar. À frente, depois, mais cinco velhas. Seis, sete. Todas com pequenas luzinhas alumiando o seu trabalho. 

Anabela parou. Sentia as pernas a fraquejar. O frio começava a espalhar-se pelos ossos, pelos músculos, pelas veias. Sentia-o até no rosto, um frio vindo de dentro, calmo, silencioso. Titubeante, procurou amparo com a mão livre, sem que houvesse uma árvore ao seu alcance. 

À sua volta, mais lavadeiras se juntavam, entoando um fado conhecido nas suas vozes estridentes, num compasso marcado pelo som dos lençóis encharcados a bater nas pedras.

Esta menina é d’oiro

D’oiro é esta menina

Hei de mostrar-lhe o céu,

Depois de ser pequenina.

O coro subia de tom, as vozes agudas praticamente ensurdecedoras.

Anabela sentiu-se nauseada, o frio continuando a roubar-lhe a ação, os movimentos, prendendo-lhe as articulações. Caiu de joelhos e, nesse momento, percebeu que os lençóis se cobriam de sangue. Foi perdendo a consciência. O corpo tombou, ficando submerso.

Uma das lavadeiras aproximou-se e tirou a menina dos braços da avó. Começou a embalá-la, abrindo para a recém-nascida um sorriso espectral, sem dentes.

Quando não for pequenina,

Sob o brilho do luar,

Hei de mostrar-lhe o céu,

Hei de ensiná-la a lavar. 

A lavadeira poisou-a então na margem, onde a terra estava seca, onde o emaranhado de trepadeiras de flores roxas serviria como alcofa.

As luzes pálidas começaram a apagar-se, uma a uma.

A bebé, envolta num lençol branco e imaculado, começou a chorar.


SOBRE O AUTOR

Inês Videira

Inês vive rodeada de livros desde que aprendeu a ler. Reza a lenda que, quando acabou o livro de Português do 1.º ano, desatou a chorar, porque não tinha mais livros — algo que a mãe resolveu prontamente, com um bonito volume dos Contos de Grimm. Uma coisa levou à outra, então, aqui estamos.

Experimentou escrever em vários géneros ao longo do tempo, e parece que aterrou no fantástico, ocasionalmente escurecendo-o o suficiente para chegar ao terror.