Limbo

de Nuno Gonçalves

 

A água é 800 vezes mais densa que o ar.

A luz dobra quando cruza a superfície.

E eu acho que o tempo também.

Cá no fundo, o tempo também se dobra sobre si próprio e não passa como passava lá em cima, à superfície. Os minutos são longos, densos como horas. Os dias como semanas, e os anos… os anos tocam a eternidade.

Vejo mal, porque a luz dobra quando submerge. Consigo adivinhar os ossos que espreitam por entre a massa esverdeada do que antes eram os meus tecidos, músculos, tendões, gordura. Vejo mal, mas vejo-os lá em cima, a gozar do ar que já foi meu.

Não foi só a carne que apodreceu. As memórias surgem-me na mesma forma mole e nauseabunda. Já duvido que sejam reais a não ser que considerem real o sorriso de um cadáver.

Lembro-me, porém, de ser um deles. De nadar, de rir e chapinhar com a alegria desenfreada de um dia de verão. Flutuava de costas, a fitar o céu, a sonhar com futuros risonhos, futuros azuis e luminosos, quando ela me puxou… e dei por mim aqui, onde nada é azul nem luminoso, onde tudo se afoga numa penumbra castanha.

Eles saltam, lá em cima, e nadam, batem as pernas e mergulham. Desafiam os pulmões e tentam mergulhar mais fundo e mais fundo. E talvez se… talvez se mergulhassem um pouco mais fundo ainda… talvez se eu me esticasse um pouco, me libertasse das algas que me abraçam e voltasse a dar uso a estes braços, a estas mãos…

 

***

 

Aposto que não tens coragem de…

Começam assim todos os desafios lançados por adolescentes. O início é sempre este, o resultado é imprevisível.

— Aposto que não tens coragem de mergulhar até tocar no fundo.

É assim, simples. Uma rapariga na margem e três rapazes no meio do rio a tentar impressioná-la.

— Fácil, fácil — diz um deles, e já só vemos o cabelo preto, encaracolado, a desaparecer da superfície, e voltar em poucos segundos. — Ui, não se vê nada.

— És mesmo bebé — diz outro, de olhos cor de mar. — Para que é que queres ver? É só descer e subir.

Desce e demora um pouco mais do que o primeiro. Quando volta, não se adivinha triunfo no seu rosto.

— Isto é fundo pra caraças.

O terceiro aproxima-se, sabe que é a sua vez de subir a palco, que os holofotes repousam nele e esperam grandes feitos.

— Eu sabia que precisavam de mim. — Relanceia a rapariga, que atira pedrinhas para a água com gestos aborrecidos. O rapaz alteia a voz, sacode o cabelo demasiado comprido para o gosto de sua mãe e anuncia:

— Até já!

Os outros dois disfarçam mal o embaraço do falhanço e esperam, em silêncio, que o terceiro volte. Mas ele tarda. Não dizem nada, olham-se apenas enquanto os segundos passam. A rapariga levanta-se e grita-lhes:

— O Gonçalo?

Eles encolhem os ombros.

Quanto tempo teria passado?

A rapariga lança-se à água. Mergulha com elegância e nada com desenvoltura. Os dois que sobram esquecem, por instantes, o amigo, perdidos nos movimentos dela.

— Então, o Gonçalo? — pergunta ela, com a voz algo ofegante.

E, mesmo no meio deles, surge o desaparecido, com um grito que agita as águas. Eles afastam-se, com o susto, até o grito dar lugar a gargalhadas.

— Ah! Deviam ver as vossas caras! — sorri, enquanto se deita a boiar de costas.

— És mesmo parvo, tu — diz a rapariga, aproximando-se. — Chegaste ao fundo?

— Nah. Impossível.

— Três meninos, é o que vocês são. Até já.

E mergulha.

 

***

 

Ela não mergulha como os outros. Aproxima-se com facilidade de onde me encontro. Os seus pés tocam no chão mesmo a meu lado. Ela não me vê, apesar dos olhos abertos. Aproveita o solo para o impulso e lança-se para cima.

Estico o braço e agarro-lhe o pé direito.

Ela tenta libertar-se, talvez julgando ter-se enredado nalguma planta. Mesmo com músculos já carcomidos pela água e pelo tempo, a minha mão fecha-se como uma ostra.

A perna que agarro sacode-se com violência, mas ela não olha para baixo. Fixa a luz lá em cima, onde as pernas dos outros três se agitam, onde o ar a espera, onde abandonei os meus sonhos.

Puxo-a.

Resta-lhe pouca força. Vejo-a finalmente a virar-se para mim, e o ar que ainda tinha nos pulmões sai todo de uma só vez, naquilo que deveria ter sido um grito.

Não sei bem o que ela vê. O que me restará do rosto? Os olhos, osso, alguns dentes? Tento sorrir-lhe.

Penso que ela percebe que está a olhar para o seu futuro. E agora que terei quem tome o meu lugar, posso partir.

Para lá do solo, para mais fundo que o abismo.

SOBRE O AUTOR

Nuno Gonçalves

Nuno Gonçalves devora livros há 30 anos. O prazer da leitura fez crescer a vontade de um dia ver as suas próprias palavras no papel, encadernadas, à espera de um leitor. O caminho escolhido foi outro, e a Medicina atraiu-o mais do que as Letras. Manteve a ligação à literatura, retomando os hábitos de leitura e dinamizando um blogue de crítica literária durante alguns anos. Depois de iniciar uma nova caminhada na escrita de ficção, venceu o prémio António de Macedo em 2022 e foi o finalista português do concurso de microcontos da EACWP em duas ocasiões (2022 e 2023).