Livre-Arbítrio

De Nuno Amaral Jorge

 

Noutro lugar, soou uma campainha. Já estava na hora.

Asmodeu levantou-se. O soalho soltou uma série de estalidos cansados.

Asmodeu. Nome parvo. As pessoas são demasiado imaginativas. Precisam de drama para fixar as coisas. Os jornalistas não respeitavam nada. Mas era o nome dele.

Asmodeu era alto e forte, coberto de músculos sólidos, muitos deles tatuados com desenhos que variavam entre o sinistro e o abstracto. Os mais de cem quilos calcavam o chão com um ritmo de mau presságio. Percorreu de forma lenta os vinte metros que distavam entre a cozinha e a porta.

Parecia esgotado.

Dele, saía o odor das casas ou celas dos estupradores de idosas, de crianças, de torturadores de animais, dos que assassinavam com as mãos, calma, convicção e gozo, enquanto ejaculavam nas calças. Era um odor que saía (não só) da pele, como uma névoa doentia e subtil.

O carteiro fitou-o nos olhos. O verde quase incandescente silenciou-o, bem como o cheiro que sentiu. A pulsação acelerou. A queimadura dos olhos ficar-lhe-ia gravada na mente e nos sonhos nas duas semanas seguintes. Após assinar o recibo, fechou a porta sem proferir uma palavra. Coçou os genitais. A erecção era indisfarçável.

Estava a ficar impaciente. Cometera um erro. Um erro que só a sua faculdade única permitira recordar. Nem a Estrela da Manhã conseguia fazer aquilo.

Consultou as suas notas. Verificou os horários, as entradas e saídas, o dia do fim da festa, o local das noites de núpcias, as medidas de segurança, quase sempre inexistentes, os hábitos, as fotografias, as rotas, os amigos, os constrangimentos, a cor dos carros e tudo o resto. A contragosto, tomou um banho. Era necessário. O outro cheiro dele atrairia atenções. Era necessário.

Vestiu algo normal, colocou o saco às costas e ouviu o som metálico que emergiu do interior, como um molho de grandes chaves. Saiu de casa. Caminhou até ao carro já com milhares e milhares de quilómetros, mas ainda em condições. Pendurado no retrovisor estava um caduceu. O Diabo está nos detalhes e a ironia podia ser um inferno. Não pôde deixar de rir. Algo cabriolou por trás dos olhos verdes e do rosto bonito e bem desenhado.

O carro atravessou a cidade numa marcha ligeira, dentro das regras. Não ligou o rádio. Gostava de música, mas estava excitado e não queria que nada o distraísse daquela antecipação. Algo se contorcia dentro dele. Algo faminto, dominante e exigente.

Já a extrema-unção do dia começara quando Asmodeu parou o carro em frente à vivenda. O portão, estranhamente ferrugento, desenhava sombras que se agigantavam nas paredes da casa, como uma ameaça velada.

Não havia cão.

Excelente, pensou. Excelente. Não gostava de matar cães. Só sentiam dor e medo e não percebiam bem o que lhes acontecia. E isso não podia ser. Era preciso saber o que acontecia, o que continuaria a acontecer durante algum tempo, até que a luz se apagasse.

O casal entrou no portão enferrujado quando a Lua já se erguera do sangue do Sol, completamente deposto no horizonte. Era amarelada, como uma esclera doente. Asmodeu abraçou o saco que trazia na mão. O som metálico trouxe-lhe uma alegria quase infantil.

O portão estava destrancado, Asmodeu abriu-o. Este, surpreendentemente, não rangeu. Caminhou lesto para um homem do seu tamanho e percorreu a parede até uma das janelas térreas. Aberta. Estava tudo a correr de feição. Nunca tinha sido assim.

O intruso chegou ao quarto quando o casal gemia e resfolegava de forma entusiástica. A mulher emitia gemidos que terminavam num agudo final, inspirando para ganhar fôlego. O homem, em cima dela, penetrava-a com toda a força que tinha, em estocadas ritmadas.

Asmodeu sorriu. Num instante, arrancou o homem de cima da mulher e lançou-o à distância. O corpo nu voou como um boneco contra uma cómoda, caindo depois para o chão de forma desarticulada. A mulher gritou. O sorriso aberto de Asmodeu parecia o de um réptil malevolente e terrivelmente sábio, mas a face era humana. Bonita até. Afinal, era só um homem.

Amarrou a mulher a uma cadeira. Deixou-a nua, de cabelo desgrenhado, com um pequeno regato de sangue a pingar-lhe do nariz. Amarrou-a com as pernas abertas, deixando à vista o sexo depilado e ainda intumescido, bem como o corpo transpirado pelo sexo que precedera a chegada do intruso.

O enorme homem agarrou o outro e colocou-o de quatro em cima da cama. A vítima estava tão tonta da pancada que os braços caíram para a frente, como alguém que se prepara para nadar de bruços. Não teve a benesse da tontura durante muito tempo, pois num ápice Asmodeu penetrou-o por trás, com uma força e uma dureza que lhe arrancou gritos de dor, mas sobretudo de outra coisa. Os gritos de algo que é invadido onde nem o pior pesadelo permite acesso. E onde a loucura começa.

O agressor sodomizava o homem com um vigor impressionante. E sorria. Olhava para a mulher enquanto o fazia, e ao mesmo tempo agarrou no saco que trouxera. A faca saiu rápida, como uma coisa viva. O homem gritava, debatia-se, mas a força do agressor era demasiada, colando-o aos lençóis como uma prensa. Quando Asmodeu começou a cortar a pele das costas da sua vítima, o sangue tingiu os lençóis. A visão animou ainda mais o violador, que olhou para a mulher, em busca de um acrescento ao horror do qual bebia a sua luxúria.

Ao observá-la, Asmodeu perdeu o sorriso.

A mulher soltara uma das mãos e olhava-o, retribuindo o seu sorriso malévolo numa paródia grotesca e cruel de sensualidade, enquanto se masturbava freneticamente. A língua entrava e saía da boca, movendo-se a uma velocidade impossível, mas os olhos e os lábios formavam uma expressão que deixou Asmodeu confuso, perdido entre o aumento da sua excitação e a sensação de alarme. Tinha um pedaço de pele na mão, e o homem violado ainda gritava com toda a voz que tinha.

Isto durou mais uns minutos, até que a mulher falou. Era uma voz sibilante e feminina, mas também obscena, arrancada dos mais profundos êxtases de prazer. Gotejava troça e sarcasmo divertido em cada sílaba.

— Então é isto que fazes com o teu livre-arbítrio? — perguntou, soltando uma gargalhada.

Estrela da Manhã.

A mulher acordou então, para morrer logo em seguida.

Com um sorriso.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE O AUTOR

Nuno Amaral Jorge

Nuno Amaral Jorge nasceu em 1974. É jurista, fotógrafo amador e escritor freelance, além de bibliófilo. É guionista no projeto de banda desenhada portuguesa Apocryphus, desde a sua primeira edição, em 2016. Em 2018, publicou um livro de contos infantojuvenis chamado A Joaninha ao Contrário e Outras Histórias, e em breve será publicado um segundo volume de contos, ambos pela editora Ideias com História. Em 2019, publicou um romance chamado As Três Mortes de um Homem Banal,  pela Editora Planeta e, em 2020, participou na antologia de contos na edição comemorativa dos 30 anos da APAV, À Roda de uma Vontade. Em 2022, publicou um conto na antologia Os Medos da Cidade, da Editorial Divergência e pretende acabar um romance que se encontra «a meio», bem como um conjunto de contos de terror e fantástico. Stephen King é a sua referência.