Lúcia

de Laura Vasques de Sousa

 

Lúcia, musa no esplendor do ocaso, coberta de negro dos pés à cabeça, com luvas de tule a condizer. Soturna e imóvel, com os lábios gretados e os olhos emoldurados por duas convictas olheiras arroxeadas, enquanto velava o corpo da própria filha na capela mortuária do cemitério. Óscar apaixonou-se imediatamente. 

Sonhou, durante semanas, com o corpo de Lúcia, esculpido na perfeição, dono de uma palidez etérea, deitado em lençóis de cetim lilás. Refém, contorcia-se sozinho na cama, no deleite tóxico do desejo.

Estava destinado que os caminhos de ambos se cruzassem mais um vez. Óscar, atónito, contemplava-a. O retrato que guardava na memória não fazia jus à verdadeira beleza de Lúcia.

A respiração descompassada atropelava-o e a vontade voraz intumescia-lhe os músculos. Trémulo, aproximou os dedos da bainha do vestido e levantou-o até alcançar o relevo dos tornozelos. Avançou pelo caminho sulcado entre as pernas dela, explorando com a mão o contorno dos gémeos e dos joelhos, culminando nas coxas, que não ofereceram resistência. Desajeitado, sôfrego, faminto, Óscar beijou-a e amou-a, sabendo que a fortuna não o brindaria novamente. 

Saciado, mas ainda ofegante, apeou-se e compôs-lhe o vestido. 

Sorriu, com carinho, enquanto olhava para o rosto marmoreado de Lúcia uma última vez. Despediu-se com um beijo nos lábios e fechou a tampa do caixão de mogno forrado com cetim lilás, onde jazia o seu cadáver, como tantas noites o sonhou.

Apertou o cinto das calças e abotoou o casaco, cuja lapela exibia o logotipo dourado da agência funerária. Sereno e formal, abriu as portas da capela e recebeu, com sentidas condolências, os familiares enlutados que aguardavam lá fora.


SOBRE A AUTORA

Laura Vasques de Sousa

Nasceu em Lisboa, no ano de 1978.
Desde sempre rodeada por livros, foi apenas depois dos 40 anos que teve a lucidez de lhes fazer a vontade.
Em 2023, venceu o 12.º Concurso Literário da Academia Madureirense de Letras («Vácuo») e ficou em 3.º lugar no XXVIII Prémio Literário Hernâni Cidade («Os Pardais»). Em 2024, foi distinguida com duas Menções Honrosas, no concurso Novos Talentos FNAC («Cerração») e no Primeiro Prémio Literário O Prazer da Escrita / Visgarolho («Purga»).
Tem obra publicada em antologias e coletâneas, revistas literárias e plataformas digitais.