Mãozinhas Santas

de Nuno Ferreira

 

Pinga sempre, no beirado da janela. Gisela levanta-se, com remelas nos olhos semicerrados, fecha a portada e volta para a cama, já sem o tamborilar das gotas a ecoar-lhe nos ouvidos. É rotineiro. Trabalha há vários anos num bar nocturno, e trabalhar à noite foi o melhor que já lhe aconteceu; só assim consegue fugir dos seus fantasmas.

Hoje, o dia está cinzento. É meio-dia e Gisela está mais desperta do que o habitual. Calça as pantufas revestidas a lã, apressa-se a chegar à janela, e é surpreendida com a cor do gotejar.

O grito sai, mas é abafado pelo próprio preconceito, sintomático de uma insegurança já familiar. O bairro é bastante frequentado àquela hora.

É só um pássaro morto, repete para si mesma. Mas o medo é cabal. O fedor, repugnante. Não é carniça; antes o cheiro de um lavabo público com manutenção à míngua. Não se atreve a pôr a cabeça de fora.

Fecha a janela com força, resoluta em telefonar ao Avelino, o afilhado que, nas suas próprias palavras, tem umas «mãozinhas santas». Ele dará conta do recado.

Pi-pi, pi-pi, e a chamada chega ao fim. Insiste, mas o pipilar morre novamente com a voz melíflua do correio de voz. O defeito do afilhado é nunca andar com o telemóvel no bolso.

— Merda — é tudo o que lhe ocorre dizer, atirando-se para a cama, e repete mentalmente a palavra franca, a mais entendível de todas, meia dúzia de vezes.

Volta a levantar-se, mete o roupão sobre os ombros e encaminha-se para o corredor espartano; dali para uma cozinha de tons bolorentos; dali para a escadaria de acesso ao sótão. As portas rangem dolorosamente; o Avelino ficou de pôr óleo nas dobradiças. Ao subir as escadas, as pernas de Gisela pesam-lhe. O excesso de peso nunca lhe trouxe dissabores, à excepção do cansaço e das dores nas articulações. Está escuro, e o fedor propaga-se por toda a casa; é uma coisa nauseante, parece lamber as paredes.

Gisela olha para o cimo das escadas. Em criança, temia aquela porta. Morreu ali a avó. Depois, transformou o sótão num acervo de velharias, e não mais lhe ligou importância. Olha para a porta de fórmica com a lanterna do telemóvel ligada, como se temesse que um sorriso sangrento ali se desenhasse.

Alcança-a e abre-a com um assomo de coragem, a miríade de velharias coberta por um manto de sombras, apenas mitigado pela luz matinal que entra pelas frinchas da veneziana na única janela da divisão. Gisela quase pode jurar que vê a silhueta oscilante do menino autista que a sua mãe teve antes de si, morto atropelado tinha apenas oito anos. Ocupa-lhe o lugar a sombra estática de uma antiga balança de mercearia.

Gisela caminha então para a janela, reunindo coragem para puxar a fita da veneziana. Diz a si mesma que talvez seja melhor voltar para o conforto da cama e esquecer tudo aquilo. Fingir que não viu e que não cheirou nada. Dormir toda a manhã e sair para almoçar fora — um frango no churrasco — e passar a tarde a passear. Alguém se ocupará do pássaro morto.

Faz subir a veneziana. Os seus olhos vêem o querido Avelino, as «mãozinhas santas» vermelhas de sangue abertas no vidro da janela, os olhos abertos, o rosto distendido num grito morto.

O de Gisela é vivo.

Ocorre-lhe que o Avelino tinha ficado de lhe arranjar a calha da chaminé.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE O AUTOR

Nuno Ferreira

Nuno Ferreira foi ator, coordenou um grupo teatral, praticou kung fu e danças de salão. Pontualmente, apresenta noites de fado e pequenos espetáculos. É licenciado em Gestão de Recursos Humanos e Comportamento Organizacional, mas mantém viva a paixão pela área editorial. Fundou, em 2012, o blogue Notícias de Zallar, que produz conteúdo regular ligado à ficção especulativa. É autor da saga Histórias Vermelhas de Zallar, do livro Embaixada, e tem vários contos publicados, entre eles «Mais que Fazer», vencedor do Prémio Adamastor 2020.