Mas Também

de Inês Montenegro

 

A rua, usualmente, era movimentada. Ao anoitecer, morria. As lojas silenciavam-se, os veículos esfumavam-se; os candeeiros largavam uma iluminação amarelada. Ela ergueu os olhos, surpreendida, quando a luz do mais próximo estremeceu e se apagou, reacendendo-se logo em seguida. Toda a santa vez que ali passava…

Ouviu-lhe o raspar dos passos. Retesou-se. Espreitou a montra à sua esquerda, sem deixar de andar. O seu próprio reflexo, o seu próprio vulto: teria de parar se quisesse um vislumbre de quem caminhava atrás de si.

 

(e vais sozinha? a estas horas? sim, é perto, mas nunca se sabe. não achas que devias…)

 

Acelerou o passo; ele também. A quietude pesava-lhe, feita percepção recém-adquirida. Não se atreveu a abrandar, a arriscar a esperança de que ele a ultrapassasse e se afastasse. O cruzamento que marcava o início da sua rua surgiu logo adiante, os semáforos actuando para uma estrada vazia. Verde. Amarelo. Vermelho. Enfiou a mão na carteira, tacteando pelas chaves. Sentiu-lhes a frieza e o tilintar. Apertou-as, uma entre cada dedo. Três, no total. 

 

(ando sempre com uma latinha de laca comigo, nunca se sabe. não achas que devias…)

 

O enjoo ameaçava-a do fundo da garganta. Atravessou o cruzamento a direito, ignorando passeios e passadeiras. Correu os últimos passos. O coração pulsava-lhe pelas veias enquanto se apressava em volta da fechadura. A porta cedeu; entrou no prédio num rompante. Viu-o passar pelos semáforos e virar noutra direcção. Um candeeiro iluminou-o: calças jeans e auscultadores nos ouvidos; caminhava distraído, sem alterar o ritmo. 

Ela recuou, aliviada. O cansaço pesou-lhe, mais do que a caminhada ou a hora tardia. Arrastou-se pelas escadas até ao apartamento e ao quarto arrendado. Descalçou as sapatilhas e deixou-se cair na cama, a cabeça num nevoeiro e os olhos cansados.

Não fora nada. Estava bem.

 

(mas também, com a roupa que levas, não achas que devias…) 

 

Por mais uma noite.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE A AUTORA

Inês Montenegro

Inês Montenegro escreve sobretudo ficção especulativa. Tem contos publicados em antologias e fanzines, tanto portuguesas quanto brasileiras. Trabalha como revisora freelancer, tendo concluído o mestrado de Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa. Pelo meio, vai diversificando as experiências laborais e os projetos de voluntariado cultural. É nortenha de alma e nascimento.