Mau de Boca
de Sandra Martins
O meu sobrinho de 12 anos veio de França passar as férias comigo. Vi que se tornara um rapazinho muito calado e não comia às refeições. Passava o tempo a mexer a comida no prato, sem nunca a levar boca.
Um dia, apercebi-me de que mastigava algo. Ao olhá-lo de frente, vi que tinha um rabo de lagartixa do lado de fora da boca, a abanar-se desesperadamente.
Gritei. Senti-me agoniada. Ele permaneceu indiferente; calado.
Ao jantar, não falámos. Ele, como sempre, nada comeu.
Questionava-me sobre o que ele teria feito aos ossos. Não encontrava vestígios deles.
Na manhã seguinte, vi que a vizinha da frente tinha colocado a gaiola do pássaro no parapeito da janela. De repente, dei por falta do miúdo. Chamei-o várias vezes em voz alta, fui lá fora. Do outro lado da rua, ele virou-se para mim, com as penas do animal ainda a saírem-lhe da boca.
Corri para casa. Olhei para a gaiola da vizinha, nem um indício da matança. Ele engolia o animal inteiro e sugava tudo sem deixar nada, nem patas, nem bico.
Queria acreditar que era da adaptação ao novo local e que passaria a qualquer instante.
Dois dias depois, apareceram os vizinhos do fundo da rua, a chamar pelo seu cachorrinho.
SOBRE A AUTORA
Sandra Martins
Sandra Martins nasceu e vive em Lisboa. Estudou Gestão e Estatística. Escrevia ocasionalmente com o objetivo de informar.
A pandemia e o confinamento tornaram a ocasião cada vez mais frequente e, depois de alguns cursos na Escrever Escrever, começou a fase de exploração, para criar algo mais interessante.
O desconforto e as incertezas que marcaram os últimos anos trouxeram a público algumas experiências pouco racionalizadas e potencializaram a escrita de terror.