Mourinho

de Patrícia Lameida

 

— Sónia, olha para isto! — A loira rodopia pela erva. Para quem cá chegou tão cedo, vem muito animada. — As fotos que vamos tirar! — Agora, dá saltinhos. Eu pareço uma criança, mas aquela é que não cresceu.

A outra, de caracóis, traz cara de frete, mas aos poucos a expressão muda: primeiro confusa, depois maravilhada. Ninguém espera um prado verde, com um ribeiro brilhante, aninhado entre os montes, depois de duas horas de trilho irregular e pouco seguro. Esforço-me por manter o espaço paradisíaco, é a única forma de ter companhia.

— Olha a ponte! Lindo! — A loira está demasiado empolgada. — Tira-me fotos assim! — E faz poses em todas as versões conhecidas, nem sequer é original.

A caracóis faz-lhe a vontade, mas continua aborrecida. Estão a perder a piada. É altura de começar.

— O que é que estás a fazer? Porque é que paraste? — Quando deixa de ser o centro das atenções, a loira chateia-se.

A caracóis está dobrada, olha o chão com atenção e reúne os meus dobrões. Ainda ninguém os deixou passar. Sempre que um vivo os vê, quer levá-los. Mas não pode. São meus.

A loira aproxima-se, e os seus olhos tornam-se redondos, avaros. A pausa aparente não é surpresa, a loira organiza a melhor forma de roubar o que é meu.

— Oh! — deixa escapar. — Achas que são reais?

A caracóis confirma.

— Espera, guarda-os na minha mochila!

— Nem penses! — A estridência que a caracóis solta faz-me sorrir. O feitiço leva à ebulição do que todos têm de mais sombrio. — Não tocas no que é meu!

— Teu uma ova! — retalia a loira. — Fui eu quem nos trouxe cá!

Sem que a caracóis perceba, a loira contorna-a e agarra-lhe num punhado de cabelo crespo, expondo o pescoço que rodeia com o braço fechado num gancho firme. A caracóis arfa, ganha balanço e, ao inclinar-se para a frente com força, arrasta a loira num arco sobre si, aterrando de bruços com um grito. Sem lhe dar tempo, a caracóis gatinha até ela e enfia-lhe as unhas pelos olhos.

— Fui eu que encontrei! — Agora está a ficar animado. Do amontoado que as amigas criam, saltam cabelos, gritos e sangue.

Os séculos passam e os vivos não mudam. Neste vale, onde ancorei a alma a uma ponte, ter companhia não é frequente. Mas, quando me visitam, oferecem sempre um bom espetáculo.

 

SOBRE A AUTORA

Patrícia Lameida cresceu entre livros, aventuras e novos mundos. Escreveu, desde cedo, poemas e pequenas histórias que esqueceu com o tempo. A vida divergiu do mundo das letras durante a sua formação e entrada no mercado de trabalho. Não tardou a reencontrar esta paixão, mantendo um blogue de crítica literária durante vários anos e escrevendo pequenos textos, alguns dos quais poderão ser encontrados em antologias como o Almanaque do Dr. Thackery T. Lambshead de Doenças Excêntricas e Desacreditadas e Não Vão os Lobos Voltar e em revistas literárias como a Palavrar.