Na Gaveta

de Júlia Pinheiro

 

De noite, todas as noites, tenho o homem da gaveta ao meu lado. Nunca olhei directamente para ele, nunca lhe tentei tocar. Mas sei que ele lá está. Quando abro os olhos a meio da noite, ou antes de dormir nalgum tremor do sono, vejo a sombra dele, só um tom mais escuro do que a restante escuridão da noite no meu quarto. Mas vejo-o. Está sempre de pé, com a mão esquerda agarrada ao puxador da gaveta da minha mesinha-de-cabeceira.

Não sei quem é, não sei se é real ou um fruto completo da minha imaginação. Nunca ouço ninguém a entrar nem ninguém a sair. Nunca ouço sequer alguma respiração da parte dele. Só o vejo. E sinto. Todas as noites.

No início, o medo paralisava-me, não conseguia mexer-me nem que quisesse. Depois, percebi que era uma constante inócua. Só uma presença ao meu lado. Só isso. Agora, é até reconfortante. Sei que, desde que a escuridão se instala, e eu me instalo na cama, até que algum raio de luz comece a despontar do horizonte, ele vai ali estar. E sabe bem. Ter aquela companhia desconhecida, mas próxima. Sem sentido, mas que aquece. Não estou tão sozinha. Não fico com tanto medo do escuro. Até me ajuda a dormir, mais que não seja porque o restinho de medo que se mantém dentro de mim me obriga a fechar os olhos e manter esta minha nova ideia dele. Antes que o veja. Ou que saiba o que ele quer. Ou que veja a sua cara. É melhor que continue a ser apenas o homem da gaveta. Boa noite.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Júlia Pinheiro

Júlia Pinheiro, nascida no dia de Natal de 1993, é formada em Engenharia Biomédica, e a escrita e leitura são uma constante no seu dia a dia. Aprecia leituras estranhas, escrever histórias perturbadoras e hambúrgueres. Sonha em ter um jardim, dormir uma noite decente e conhecer a Mary Roach. Faz alergia ao pó, a fretes e a estar quieta. Escreve à mão, em letra muito pequena e sempre, sempre, no papel que estiver mais à mão. É frequentemente encontrada ao som de heavy metal, com um livro numa mão, uma caneca de chá na outra e bem enterrada debaixo de várias mantas.