Não Saí da Minha Noite

de Paula Estêvão

 

Tinha tentado respirar, sobreviver, viver até, mas não consegui. Não conseguia um minuto de liberdade, de paz. Ele não me deixava sequer ir às compras sozinha. Uma ida ao café sem aviso era um acto grave de deslealdade. Não sabia, então, que existiam outras mulheres na minha situação. Não falava com quase ninguém. Ele não deixava. O meu telemóvel era esquadrinhado todos os dias. Só podia receber chamadas dele e fazer chamadas para ele.

Foi na ambulância que ouvi alguém dizer: «Mais uma. Este mês já são vinte. Parece que isto não termina nunca. Aguente-se, minha querida, estamos quase no hospital. Vamos ajudá-la».

Não ajudaram. Quando entrei no hospital era tarde demais. Ainda ouvi alguns comentários, cada vez mais longe. A profundidade dos cortes. A perda de sangue. Os órgãos expostos. Irreconhecível.

O meu último pensamento foi para a Teresa e a Clara, as minhas filhas, que seguiram para o hospital em ambulâncias diferentes.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE A AUTORA

Paula Estêvão

Economista, contista e novelista. O seu sangue possui emoção, hemoglobina, terror, mar, plasma, saudade, e tantos mais sons e cores… Gosta de escrever, ler e mergulhar no oceano. Em 2022, publicou o seu primeiro conto, integrando uma antologia intitulada Nem Sempre os Pinheiros São Verdes II, da editora Poética Edições.

Transporta dentro de si todas as palavras que ainda não escreveu.