Necessidade de Conservação

de José Maria Covas

 

Só mais um pouco, só mais um pouco. Estou quase lá.

Pensamentos deste tipo reconfortavam Bernardo ao longo do caminho. Tinha atravessado a cidade inteira à procura da Salvação. O rumor, entre os companheiros, de um abrigo onde os abandonados eram bem-vindos com refeições quentes e cobertores era bom demais para ser verdade. 

Ninguém da comunidade humana queria saber de pesos inúteis como ele. Porque é que então o primeiro-ministro Barrabás Bonança se interessara tanto ao ponto de construir pavilhões para centenas de pessoas como Bernardo, por todo o país? 

Era só mais um gasto desnecessário

Bernardo, esfarrapado em corpo e alma, ao ver o noticiário numa montra, quase concordara com o parlamento. Não estava, por isso, nada à espera de chegar à porta do edifício metálico e ter ali o primeiro-ministro para o cumprimentar, como a tantos outros. Isto antes de ser convidado, por voluntários no interior, a afundar-se numa cama cilíndrica pendurada no teto. A esperança emanava dos presentes, aconchegados pelos sonhos realizados de caldo verde.

Até que a porta se fechou. Os estores de ferro cobriram as janelas e ouviu-se o primeiro-ministro lá fora, a falar do culminar do projeto nacional, que iria ajudar os cidadãos famintos por mudança, antes de puxar a alavanca. De repente, o chão abriu-se e as roldanas no teto começaram a fazer descer o casulo de Bernardo e dos demais em direção a um espaço vazio, de onde provinha um calor reconfortante. Só depois de o seu corpo começar a aquecer, até ao ponto de cozedura na lata fechada, é que Bernardo se apercebeu de que estava num forno industrial.

Minutos depois, o gado foi silenciado e as embalagens depositadas em camiões para distribuição distrital, nos supermercados e nas casas dos contribuintes, por encomenda. Ao mesmo tempo, nas ruas cheias de gente, batiam-se palmas de agradecimento ao primeiro-ministro, pela sua grande preocupação.


SOBRE O AUTOR

José Maria Covas

José Maria Covas, desde que nasceu a 26 de setembro de 1998, sempre tentou compreender a realidade em seu redor e contribuir para a sua evolução. Licenciou-se em Ciências Biomédicas na Universidade de Coventry e fez o mestrado de investigação em Medicina Regenerativa na Faculdade de Medicina e Veterinária da Universidade de Edimburgo. Os seus poemas, contos e guiões conjugam o mistério e o estranho da literatura e cinema com o ocultismo e surrealismo das suas viagens, criando, no processo, o seu próprio universo artístico, que eternamente explora a condição humana.