No Lodo

de Dália Rodrigues

 

O bico do fogão arde numa chama alta. Tem exatamente 40 segundos até ter de o desligar ou a noite irá por água abaixo. Mas não se pode perder nenhum segundo. Nesse tempo, corta em cubos, em rodelas, em juliana. Os olhos lacrimejam quando esmaga os dentes de alho, e limpa-os com o pulso. O serviço está quase a chegar ao fim, tem de se aguentar. Os sábados são sempre os dias mais frenéticos. Meu deus, as saudades que tem dos restaurantezinhos de bairro.

Lâminas de chalota a caramelizar à temperatura e tempo exatos e cuidadosamente pousadas sobre o açúcar de coco, quando prontas. Mas algo não está bem.

— Porra, Gil, estou a ouvir o óleo a ferver! Baixa isso! — grita. — Acorda!

— Sim, chef! Peço desculpa — ouve ao longe.

Após desligar a chama no momento certo, sorri por um segundo, mas a confusão e o caos da cozinha despertam-na do curto estado de relaxamento.

Corre pelo balcão e aprova os pratos a servir, enquanto coloca mais pratos vazios pela bancada. Os topos de rabanete à direita, tocando levemente sobre um lago de redução de vinagre balsâmico, as chalotas amontoadas num ninho ao lado, as cascas de batata roxa crocantes logo a seguir (uma está queimada, completamente preta). Merda, Joana! Atira-a fora e dá uma leve pancada na campainha, chamando os empregados de mesa.

— Laura, preciso do salmão — grita por cima do ombro.

O pedido da mesa 13: cama de grelos salteados sob fatia de bife Wellington malpassado — Que merda é esta? A carne está tão crua que parece ter veias esverdeadas ainda a pulsar. Limpa o suor da testa e corta outra fatia, emprata-a e toca novamente na campainha, que chia. Com a humidade da cozinha, já deve estar a enferrujar.

O pedido da mesa 6: risotto de gambas e cogumelos selvagens, a sua especialidade. Pega num prato diferente e enche uma concha cremosa, quente e convidativa do arroz. Decora com gambas, cogumelos variados e arranca uns talos do vaso de microvegetais.

— Argh! — Um inseto levanta voo por entre as folhas. Estremece, passa as folhas por água e coloca-as no prato. Depois, dá uma palmada forte à campainha, mas esta não produz qualquer som. — Serviço! — grita a plenos pulmões e empurra o prato pelo balcão.

Sacode os braços ao longo do corpo e respira fundo. Começa a sentir que a noite está a descambar. Não pares. Não desistas.

— O salmão! A mesa 9 está à espera!

Os pedidos das sobremesas começam a surgir. Já pré-preparadas no frigorífico, só tem de cortar o bolo de alfazema em hexágonos, colocar uma quenelle de gelado de limão por cima e regar com ganache de chocolate branco. O gelado apresenta manchas brancas, amarelas e verdes salpicadas. Devem ter adicionado lima desta vez. Quando pega na ganache, apercebe-se de que está toda coalhada. Pedaços brancos e irregulares arrastam-se pelo creme brilhante. Um momento de pânico antes de pegar num coador e passar o preparado a pente fino, conseguindo apenas umas gotas. Sabe a asneira que está a fazer.

Só depois de tocar três vezes na campainha é que consegue um tinir. Mas não é o som agudo ao qual está habituada, soa mais a um grito de dor. Tem mesmo de a substituir. Um restaurante sem condições na cozinha… As noites em branco a estudar, as refeições perdidas a criar novas receitas e todo o dinheiro que gastou no curso de culinária mereciam mais.

Outra respiração profunda enquanto lava as mãos. Só mais uns pedidos e o serviço termina. Só precisa de servir um par de mousses de chocolate e caramelo e o confit de salmão com o puré de ervilhas e menta. Merda, Laura!

Vá lá, malta! Últimos pedidos! O salmão? O que é que estás aí a fazer afinal?

Vira-se para trás: a cozinha está vazia. É neste momento que se apercebe do silêncio total. Cozinha deserta, luzes fracas, fogões desligados e bancadas sujas e desarrumadas: lixo, talheres e pratos por todo o lado. Examinando com mais detalhe, vê camadas de pó e teias de aranha: a cozinha não é limpa há algum tempo. 

A campainha toca atrás de si, e lembra-se das sobremesas. Com as mãos ainda na bancada, rodopia e termina as mousses. E percebe que também não há qualquer som vindo da sala. Após terminar um empratamento, levanta o olhar, lentamente, tentando controlar a respiração e ouvir algum sinal: apenas ressoa a vibração do bater de asas das moscas.

Todas as mesas têm clientes, o restaurante está cheio, mas tantas moscas…

Pisca os olhos.

Quatro pessoas na mesa 13, três cabeças caídas sobre a mesa, uma de boca aberta sobre as costas da cadeira, o rosto acinzentado, enrugado, quase mumificado. Analisa a comida na mesa: podre; bolor verde e preto a corroer o prato que tinha acabado de preparar.

A mesa 2 tem duas pessoas. Uma caiu da cadeira, está deitada e contorcida no chão; cacos de vidro e comida rodeiam-na… Está coberta de baratas e larvas, e a sua pele obtém a mesma tonalidade da da mesa 13.

Olha em redor: janelas partidas, paredes apodrecidas, peçonhentas e esburacadas. A sala está completamente destruída, o ambiente adquire um tom esverdeado de musgo, fungos e mofo, como se Chernobyl tivesse acontecido novamente e a natureza se apoderasse dela. Conta 50 cadáveres esqueléticos entre os clientes e os empregados de mesa, com pratos partidos ainda nas mãos, a pele a deteriorar-se. Não consegue respirar.

No auge do pânico, a mão esmaga algo mole e húmido na bancada. No prato mesmo por baixo do nariz, um vulcão de bolor flutua sobre uma poça de água castanha e podre, de onde começam a subir bolhas de ar e gordura. Inspira, trémula. Pelo balcão, uma fileira de pratos que não se lembra de ter preparado. Larvas rastejam pelos pratos. Moscas mergulham nas tigelas.

Expira; e o rebentar da bolha.

 

 

SOBRE A AUTORA

Dália Rodrigues

Escritora, tradutora, revisora, editora, designer editorial. Desde sempre apaixonada por histórias fortes, finais abertos e histórias e personagens que nos deixam desconfortáveis. Inspirada por tudo e por nada, por sonhos e pesadelos, pelo reflexo da água e pela sombra da floresta.