O Derrame

De Nuno Amaral Jorge

 

Acordei naquele dia com uma dor de cabeça daquelas; das que se assemelham a cravar uma cavilha ferrugenta em várias secções da caixa craniana, aquele misto entre uma picada aguda e a sensação romba e prologada de quem levou com uma tábua na testa.

Se bem me lembrava, nem sequer era uma questão de ressaca, porque tinha prometido à Inês que deixaria de abusar do «xarope», especialmente daquele ao que chamavam espirituoso, coisa que eu até achava cómico, com um amargor irónico. A questão de ela me ter trocado pelo meu irmão nem acabava por ser pertinente, já que era possível que a bebida tivesse sido o motivo. Ou talvez não, se pensar bem nisso…

Levantei-me e o meu joelho direito também deu sinal. Desporto dá saúde e tal, diziam eles. Diziam e dizem bem, mas, quando me doía, só me lembrava que isto de envelhecer é uma rica merda.

Fui direito à casa de banho e tomei um duche sem sequer olhar para o espelho. Ao secar-me, olhei finalmente para a superfície polida e tive um ligeiro susto. Do canto exterior do meu olho esquerdo, nascia um enorme derrame — uma mancha vermelha e quebrada como vidro estilhaçado.

Ressaca, joelho e o olho. Lindo serviço. Estava pronto para prensar e mandar à fornalha.

Aparei a barba, pus creme na cara e saí de casa. Era sábado e tinha uma série de recados para fazer antes de me fechar em casa, ver a minha séria favorita, beber dois litros de chá e decidir, por fim, que cão é que ia arranjar. Estava na hora de criar laços com alguém, e nada melhor do que um bicho cujo ponto alto de cada dia seria ver-me. Na verdade, seria o mesmo para mim. E ou era o cão ou andar bêbado até que tudo se complicasse.

Parte da memória não voltava nem à lei da bala, e não sei bem quando ou se voltaria. Tinha uma vaga ideia de ter saído à noite, e de talvez ter estado com a minha família — os meus pais e o meu irmão, e provavelmente a minha ex-namorada, que acabara por gostar mais dele do que mim. O resto era uma névoa.

Saí de casa. O Sol estava a pino e tive de colocar os óculos. O derrame era feio, mas o facto de beber que nem uma besta devia ter alguma coisa a ver com isso. Noites mal dormidas, cataclísmicas dores de cabeça, e por aí fora.

Ao chegar ao local do meu primeiro recado, mais especificamente um centro comercial para ver preços de trelas e arneses, constatei que estavam várias pessoas numa das portas.

Foi aí que vi pela primeira vez.

Uma das transeuntes parecia ter sangue nas mãos, no peito e na face. Com uma das mãos, segurava o pulso de um idoso prostrado e inerte, provavelmente já morto, atendendo ao número de cortes que lhe cobria o corpo. Não consegui evitar o olhar directo para um lenho particularmente horrível no topo da cabeça calva do cadáver.

Abanei a cabeça, sentindo o meu próprio sangue a disparar, e voltei a olhar. O cenário era diferente. A mulher em causa tinha entrado no edifício. Não havia nada de novo a oeste.

Bonito, agora a ressaca dava alucinações. Tratei de ignorar o assunto e retomar o caminho dos meus recados.

Dentro do centro comercial, contudo, a coisa foi bem mais «divertida».

Ao andar pelos corredores, via apenas a azáfama normal de uma estrutura comercial de massa. Pessoas de todos os feitios a andar de um lado para outro, escolhendo as parcas peças fosse lá do que fosse, e de que provavelmente não precisavam, com algum cuidado para não estourar o orçamento em impulsos de consumo, que geravam meia hora de arrependimento a caminho de casa.

Ao olhar para outra montra de uma marca de sapatos para caminhada, voltei a ver algo que me provocou um arrepio. Nessa mesma montra, estava um homem que, numa das mãos, de forma casual, segurava uma mulher pelos cabelos. Esta, além de sangrar do couro cabeludo, devido ao cabelo que já teria sido arrancado, tinha os lábios fendidos, sendo fácil ver que faltavam alguns dentes.

Mas que merda era aquela?! Tinham-me posto alguma coisa na bebida?!

Como se, de repente, me doesse a cabeça, passei a mão pelo lado esquerdo do rosto, tapando o olho esquerdo. O cenário desapareceu de imediato. O agressor era agora só mais um comprador em potência.

Ao tirar a mão, o cenário voltou. Desta vez, a mulher contorcia-se no chão perante a expressão quase ausente do homem que a segurava.

Desviei o olhar. Tudo voltou ao normal. Pessoas de um lado para o outro. Compra aqui, paga ali.

Andei mais uns metros, já quase esquecido do que me tinha trazido ali, e ainda convicto de que as alucinações não mais podiam ser do que o resultado de uma brincadeira estúpida da noite anterior, em que teriam adulterado uma das minhas muitas bebidas.

No entanto, ao passar por mais uma loja, desta vez uma livraria, vi um casal de quase miúdos a cerca de três metros de distância — não deviam ter mais de vinte anos. Entre os dois, arrastavam o corpo de um rapaz aparentemente da mesma idade, embora mais pequeno e franzino, com horríveis feridas na cabeça. Cada um deles tinha uma pedra da calçada na mão que não puxava o rapaz. Mais morto do que inconsciente.

Tapei o olho esquerdo. O rapaz morto desapareceu.

Corri, com o coração a bater recordes nos 100m/pulsação, para a casa de banho mais próxima.

Cheguei e olhei para o espelho. Retirei a mão do olho esquerdo. E vi.

Comecei a gritar. E consta que não parei. Nem mesmo quando os seguranças me foram buscar.

 

 

 

 

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE O AUTOR

Nuno Amaral Jorge

Nuno Amaral Jorge nasceu em 1974. É jurista, fotógrafo amador e escritor freelance, além de bibliófilo. É guionista no projeto de banda desenhada portuguesa Apocryphus, desde a sua primeira edição, em 2016. Em 2018, publicou um livro de contos infantojuvenis chamado A Joaninha ao Contrário e Outras Histórias, e em breve será publicado um segundo volume de contos, ambos pela editora Ideias com História. Em 2019, publicou um romance chamado As Três Mortes de um Homem Banal,  pela Editora Planeta e, em 2020, participou na antologia de contos na edição comemorativa dos 30 anos da APAV, À Roda de uma Vontade. Em 2022, publicou um conto na antologia Os Medos da Cidade, da Editorial Divergência e pretende acabar um romance que se encontra «a meio», bem como um conjunto de contos de terror e fantástico. Stephen King é a sua referência.