O Dom

de Cláudio André Redondo

Descobri o dom por acaso. Um dia, já em adulto, percebi que podia usar as sombras para viajar para outro lugar. Bastava tocar-lhes, visualizar uma pessoa, ou local, e uma passagem aparecia. Visitei destinos de sonho: a Grande Muralha, o Monte Fuji, a Amazónia. Deixei de ter limites. Com o tempo, comecei a usar o dom para outras coisas. Era tão simples entrar num lugar, pegar em algo valioso e sair, que comecei a fazê-lo para trazer justiça a um mundo onde nem sempre ela existe. Corruptos e criminosos tornaram-se as minhas presas. Tirei-lhes o que possuíam e dei a quem mais precisava. A quem tinham prejudicado.

Quando faço justiça, envergo roupa, luvas e uma máscara negra. Tornei-me um herói, um justiceiro mitológico de quem falam em fóruns na Internet. Quem usa o seu poder para o mal arrisca-se a uma visita minha. Passei a assinar os meus trabalhos com o desenho de uma máscara negra. E não tardou até que me dessem um nome — «O Sombra». E que perfeito esse nome é.

Após um dos meus melhores trabalhos, deixo-me tentar por algo mais. Sentia ainda o êxtase pela obra que realizara quando a vizinha gira do terceiro direito passou por mim num vestido de Verão. Tão fresca que não me sai da cabeça o dia inteiro. À noite, não resisto. Mereço uma compensação. Aproximo-me de uma sombra e através da passagem fico a vê-la despir-se para tomar banho. Os meus músculos entesam-se com receio de ser visto. Com alívio, percebo que não acontece. Sou uma sombra dentro da própria sombra.

As visitas ao seu quarto, enquanto dorme, tornam-se um hábito. Excita-me saber que está tão perto, tão desprotegida. De uma forma que nunca ninguém antes a viu. Torno-me a sua sombra. Isso excita-me tanto que o faço com outras mulheres, amigas, conhecidas, estranhas que passavam por mim na rua. Penso nelas e uma passagem para a sua intimidade abre-se para mim nas trevas. Tornei-me mais audaz e em vez de me satisfazer em casa, recordando o que vira, passei a fazê-lo no escuro enquanto dormem. Não imaginam quanta coragem e valentia isso me dá! Deixei de ser um Robin dos Bosques e tornei-me num Frank Castle. Alguém que realmente leva a justiça aos que a conseguem comprar. Um peso que inclina a balança para o lado certo.

Alguns fãs não gostam da mudança. Dizem que fui longe demais. Mas o que é que eles sabem? Como disse o shadow_fan_1: «Esses porcos merecem! Com o dinheiro que têm, conseguem sempre comprar coisas novas. Assim, aprendem mesmo!!!».

E eu garanto que eles aprendem mesmo.

De qualquer maneira, não preciso de aprovação, sei que o que estou a fazer é correcto e isso basta-me. Estou apenas a contribuir para um mundo melhor.

Os meus novos métodos tornaram-me mais confiante. Quem me conhece diz que nem pareço o mesmo. Talvez por isso me tenha tornado mais audaz. Um dia, enquanto me satisfaço com a minha vizinha, toco-lhe ao de leve. Primeiro os seios, depois as nádegas. Venho-me numa explosão de prazer tão grande que temo acordá-la.

Torno isso num hábito. Primeiro, só com ela, mas depois também com as outras. Se se mexem, desapareço pelas sombras. Uma ou outra vez, senti-me tentado a ficar, mas a sensatez impera e saio.

Por vezes, sinto remorsos, vergonha até. Sei que o que faço não é correcto, mas eu levo o dia a trazer justiça aos outros. Aos que precisam. É justo que retire algo daí, uma pequena recompensa, mesmo que ligeiramente reprovável. Eu podia usar o meu dom apenas para proveito pessoal, mas prefiro usá-lo para o bem comum. As visitas nocturnas são a minha pequena viagem ao mundo do vilão. Nenhum herói é perfeito.

Nas últimas semanas, o caso de um banqueiro tem-me deixado particularmente irritado. Famílias na falência, pais que se suicidaram, idosos que perderam as poupanças de uma vida. E nas notícias, o seu sorriso impune. O sorriso de alguém que se julga intocável.

Quando o visito não me contenho. Os meus punhos mexem-se automaticamente, um a seguir ao outro. Os seus ossos estalam a cada beijo das soqueiras. A cara dele torna-se um empapado que lembra comida de animal enlatada. Paro quando ouço o metal da soqueira bater no azulejo.

Demoro uns segundos a acalmar-me, o coração bate acelerado nas têmporas. Levanto-me para ir embora e vejo que o Sol se pôs. A única maneira de tornar este dia melhor é visitando a minha adorada vizinha.

Quando passo para o seu quarto, é ainda a adrenalina que controla os meus movimentos. Nunca fui tão poderoso. É assim que os deuses se devem sentir. Naturalmente, apalpo-a com mais força enquanto agarro o meu pénis erecto com a mão livre. Ela acorda, só me apercebo quando ela se mexe e tenta fugir. Salto para cima da cama para a agarrar e tento-a acalmá-la. Ela chora, os seus lindos lábios em forma de beicinho tornam-se irresistíveis e beijo-a. Um longo e desejado beijo. Ela soluça um pouco, mas pára de resistir. Com cuidado, desvio-lhe as cuecas juntamente com os pequenos calções do pijama e sinto-a finalmente. Como eu desejei este momento. Apreciar o seu calor, o seu aperto. É tão bom que duro apenas alguns segundos. Peço-lhe desculpa por isso e saio.

Torno as visitas em algo regular. Mesmo quando ela mudou de casa, eu segui-a. Enquanto as sombras a acompanharem, a distância será apenas um número. Mas ela aprendeu a gostar, até passou a ficar acordada à minha espera.

Não esperava, assim, encontrar isto. O seu corpo sem vida, claramente obra sua. Sinto-me desiludido, mas não faz mal. Há outras. Ela foi apenas a primeira.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE O AUTOR

Cláudio André Redondo

Apaixonado por livros, música, cinema e videojogos, foi-se aventurando por essas áreas à descoberta de novos mundos e formas de se exprimir. Sente no terror o conforto daquela mantinha que nos aquece nos dias frios, e começou, recentemente, a tirar contos do género da gaveta. Espera brevemente tirar outras histórias, filmes, videojogos e músicas. Resta saber que figuras e lugares sombrios o acompanharão.