O Escadatório das Virtudes

de Sandra Amado

 

Jesus contou-lhes ainda uma parábola para mostrar a necessidade de orar sempre sem jamais esmorecer.

Capítulo 18, São Lucas

 

Esperança

Chamo-me Esperança e vivo em Melgaço. A minha mãe chama-se Conceição e veste-se como um corvo. Entre a viuvez e a mercearia de família, só tem tempo para rezar o terço e para falar da vida dos outros. E com estas conversas, lá vai enfiando uma alface ou um pão a mais no saco dos clientes, e lá vai amealhando. À noite, carrega o dinheiro na alcofa e, de manhã, deposita-o no banco. Ela bem quer que eu seja  médica, mas o meu objectivo é sair desta aldeia no meio do nada e tornar-me escritora.

 

Aos domingos, ao repicar dos sinos, vamos ao Santuário da Nossa Senhora da Peneda. Subimos o escadatório das virtudes, observamos Miguel Arcanjo num silêncio cristão e finalmente atingimos a  Capela.

 

Caridade

Dentro da ermida, no banco a meu lado, está a minha mãe encolhida e agarrada a um terço, enquanto admira a virgem com o filho nos braços. Pede misericórdia pela alma de meu pai, deixando cair algumas lágrimas enquanto disfarça com um lenço de linho a cheirar a alfazema. E depois, ri. No mutismo da capela fria e a cheirar a humidade, entra numa reza monocórdica e, em tom de súplica, pede-lhe que eu seja médica.

No olhar doce, consigo imaginar o sorriso de aprovação da virgem, mas esse só os crentes o conseguem ver.

 

Glória

Hoje, mesmo ao lado da minha mãe, não rezei. Limitei-me a observar a alienação de um ser hesitante entre o estado de depressão e de euforia. Parecia uma louca que chorava e ria, mas que não se deixava tocar pelo cheiro intenso a sândalo e a madeira apodrecida —  tão cega era a subserviência. Num desses estados, dei de caras com a virgem estática e inocente. Fiz-lhe uma careta e disse-lhe baixinho:

— Não passas de uma boneca de madeira.

Depois, peguei no braço da minha mãe e puxei-o, já farta disto tudo! Saímos de braço dado. Durante o caminho, senti uma pressão no peito enquanto a minha mãe caminhava aliviada nas escadas das virtudes.

De noite, sonhei com Jesus Cristo e Maria. Os soldados martelavam-lhe os pulsos, cravando-lhe pregos ensanguentados à cruz. Maria, resignada, chorava num silêncio mudo, maior do que qualquer dor. Acordei desorientada e de lençóis encharcados. Doía-me tudo. Levantei-me e fui ter com a minha mãe. Toquei-lhe no rosto com afecto à espera de uma reacção. Mas estava morta.

SOBRE A AUTORA

Sandra Amado

Sandra Amado nasceu em Lisboa, em 1972, e vive no Luxemburgo desde 2011. Em Portugal, licenciou-se em Sociologia. No Luxemburgo, estudou Gestão, desenvolvendo, ao mesmo tempo, uma paixão pela língua francesa.

As saudades de Portugal e uma nova identidade cultural foram os motores da escrita — mal du pays, como dizem os franceses.

Iniciou-se na escrita criativa em francês, sempre com vontade de ir mais além. Durante o confinamento, apaixonou-se pelos cursos de escrita de terror da Escrever Escrever, integrando, mais tarde, a antologia Sangue Novo, com o conto «A Mais Bela Profissão».

Aprecia o gótico, as emoções, as sensações e a acústica que cria nos seus contos. Acredita que o percurso de uma vida normal, como a sua, poderia dar um conto de terror, e é por isso que acredita nesta escrita.