O Fim do Rio

De Joaquim Valverde

 

Do diário de Vicente Cosme de Oliveira. Proveniência desconhecida. 

 

-25 de Agosto de 1909-

 

Partimos esta manhã de Lisboa a bordo do holandês Achernar. O imediato informou-me de que o nome significa «o fim do rio», mas para mim marca apenas o início. Ainda há pouco perdemos de vista a Velha Europa e já sinto regressar alguma da minha antiga vitalidade. A sombra dela começa finalmente a dissolver-se debaixo deste Sol radiante.

Infelizmente, o mar não tardou em fazer cobrar o seu preço e a mãe foi forçada a retirar-se para a cabine, com uma medida de antieméticos e soporíferos prescritos pelo médico de bordo. Estou, apesar de tudo, otimista. Sei que é a viagem, e não o destino, que lhe pesa na alma. Estamos ambos prontos para um novo começo.

 

-26 de Agosto de 1909-

 

Mar calmo e céu sem nuvens, tanto que os dois se confundem num borrão de azul. O horizonte mesmeriza-me ao ponto de não conseguir trabalhar. A brisa parece já trazer consigo o doce aroma do Rio de Janeiro. 

A mãe começa a recuperar do choque inicial. O futuro aparenta sorrir-nos, finalmente.

 

-27 de Agosto de 1909-

 

Parados grande parte do dia. Um problema com uma das caldeiras, segundo o meu esparso entendimento do holandês. O mar estende-se sereno até perder de vista. O vento não sopra. As ondas não batem. 

Tudo indica que pernoitaremos à deriva, mas o capitão espera conseguir retomar a viagem ainda antes de amanhecer. 

Nem tudo é mau, no entanto. Sem fumo constante a obscurecer o céu, as estrelas brilham com um vigor renovado. Mesmo agora, mesmo aqui, dou por mim a pensar em como ela gostaria de as ver assim.

 

-28 de Agosto de 1909-

 

Despertámos esta manhã com o navio coberto por uma leve neblina, que tardou em levantar. 

Apesar das melhores expetativas do capitão, o problema na caldeira revelou-se mais grave do que inicialmente suposto. O oficial de serviço apresentou desculpas pelo incómodo e assegurou-nos de que os esforços de reparação seriam redobrados.

A mãe está um pouco melhor, mas o embalo do navio ainda lhe provoca algum transtorno. Esperamos poder retomar a viagem em breve.

 

-29 de Agosto de 1909-

 

Mais um dia à deriva. O nevoeiro voltou a abater-se sobre nós, mais denso desta vez. 

Os vários pedidos de audiência com o capitão foram rejeitados. Ao que tudo indica, a tripulação não parece ser capaz de o localizar. Não me atrevo a especular de que forma tal medida de cobarde chegou ao comando de uma embarcação desta magnitude. É aparente que em todas as facetas da sociedade europeia se dá primazia a homens vis e de mau caráter.  

O nevoeiro tarda em dissipar. Tento focar-me no trabalho, mas o meu espírito está demasiado perturbado. Algo está errado.

 

-30 de Agosto de 1909-

 

Ainda nevoeiro. Há um dia que não vemos o Sol. Hoje, nem o mar discirno entre as brumas.

Não há sinais do capitão, e os imediatos parecem também ter desaparecido. Certos passageiros diligentes tentam repor alguma ordem à cadeia de comando, mas sem módica de sucesso.

Caminhamos pelo convés como espetros. A névoa abafa os sons e, quando falamos, não se ouve mais do que um murmúrio.

 

-31 de Agosto de 1909-

 

Sonhei com água negra e longas formas pálidas trepando das sombras. Reconheci tarde demais o polvo de de Montfort, tal qual o vi há anos na biblioteca do meu avô. Quebrados, fomos arrastados para o fundo, para as trevas, para o frio.

Ao acordar, a paisagem é igualmente irreal. Branco sobre um mundo cinzento. Fragmentos de sussurros flutuam à minha volta. Uma mãe que procura pelo filho. Um homem que procura pela noiva. São cada vez mais aqueles que se ausentam para não mais regressar.

Sinto que algo nos observa.

 

-01 de Setembro de 1909-

 

Luzes no nevoeiro, por vezes no céu, por vezes na água. Dançam como fogos-fátuos por detrás das coisas.

Forçada a entrada na casa do leme. Vazia. Enviada uma mensagem de socorro, sem resposta.

Forçada a entrada na sala das caldeiras. Vazia. Todas as tentativas de reacender os fogos falharam. 

O frio sente-se cada vez mais. A mãe adoeceu. Tento mantê-la agasalhada, mas receio que não seja suficiente.

 

-02 de Setembro de 1909-

 

Acordei e a mãe havia desaparecido. Chamei por ela, em vão. As vozes não viajam mais do que alguns metros antes de ser perderem na névoa.

Somos cada vez menos. Não recordo a última vez que vi alguém.

Fecho os olhos e penso nela, a salvo algures em terra.

 

-03 de Setembro de 1909-

 

Sonhos de novo. 

Estava em água profunda, algures nas trevas. Acima de mim, o navio, suspenso no vazio. Um grupo sorria-me do convés. Reconheci companheiros de viagem, o capitão, o imediato, a mãe. No meio deles, eu. Um reflexo que usava a minha cara, com olhos que eram coisas terríveis.

Dei conta de corpos inchados que flutuavam à minha volta. Acordei com o meu próprio grito. Ainda sinto o sabor do sal gelado.

Não me atrevo a abrir a porta da cabine. Lá fora, o silêncio do predador que espera a presa.

Sem comida. Pouca água. Temo o pior.

 

-03 de Setembro de 1909 (pela tarde)-

 

Dia ou noite. Entra pela escotilha uma claridade uniforme. Feixes de luz cruzam a neblina. Um enorme farol que está às vezes em baixo, às vezes em cima. Durmo quando o sono me encontra. 

Lá fora, sons como unhas em ardósia. Vozes.

Pegadas molhadas. Chapes dissimulados. 

Oiço-os chamar por mim. Oiço-os testar a minha porta. Não resta muito tempo até que eu ou a fechadura cedamos.

 

Laura, escrevo agora para ti, na esperança de que este diário sobreviva àquilo a que eu não posso escapar. Espero que saibas que sempre

 

[Fim do diário]

 

Um navio arvorando a bandeira holandesa e identificado como o Achernar atracou no Rio de Janeiro no dia 11 de setembro de 1909. Registos indicam que todos os passageiros e tripulação desembarcaram em segurança.

SOBRE O AUTOR

Joaquim Valverde

Joaquim Valverde nasceu em 1998 e é astrónomo. Escreve desde que se conhece como gente, mas as suas histórias têm geralmente como destino uma gaveta poeirenta, onde jazem como cadáveres numa cripta. Mas não para sempre. A noite cai, um relâmpago ilumina o céu e um estrondo assola as grades das janelas. Elas estão prontas para sair.