O Frio Inverno

De Luís Varela

 

Há muito que as primeiras torrentes do outono tinham tocado a terra seca e escaldada, como os cavalos hunos haviam tocado as estepes da Europa no passado. O verão havia sido escaldante e, nas regiões pobres do interior, faziam-se preces à chuva. Mas as preces devem ser regradas, porque os deuses também têm sede.

Joe levantou-se ao som das pesadas bátegas que cavalgavam furiosamente os campos. O som da chuva sobre o telhado de lata velha e ferrugenta tornava o sono impossível. Assim, ainda com breu a reinar no mundo, decidiu levantar-se. Os pés calejados pela terra tocaram o chão, que parecia especialmente gelado naquela madrugada.

Ainda sentado sobre a cama, com os pés a tocar o frio do mundo, levou a ponta dos dedos a tatear a mesa de cabeceira, até encontrar uma velha e ressequida vela. Depois, acendeu um fósforo e juntou à mesma a chama ténue. Assim que a cera se acendeu, soprou o fósforo.

Ergueu-se da cama, levando consigo aquela luz insignificante que, perante as trevas, lembrava David contra Golias. Ao chegar à porta do quarto, prestes a sair, escutou uma voz: 

— Já lá vais? — A voz propagava-se no escuro, sem origem certa. Joe parou e virou-se para a cama, tentando iluminá-la, mas a escuridão apenas permitia ver um vulto. 

— Sim. Não consigo dormir – respondeu a Josephine, tendo esta murmurado qualquer coisa em tom de concordância. Tudo voltou a ficar silencioso.

Joe saiu do quarto ainda sobre aqueles passos lentos de quem teme o que não pode ver. Ao chegar à cozinha, procurou o resto do jantar da noite passada. Depois, procurou pelo copo, pegou nele e deitou fora o resto do vinho que este ainda continha. Tornou a enchê-lo e bebeu tudo de um trago, limpando depois a boca com as costas da mão e dirigindo-se à porta da rua. Estava quase a abri-la quando se lembrou das histórias que a mãe contava: das bruxas, das almas penadas, de todos os horrores que habitavam a noite e de como era imperioso nunca sair e trancar bem portas e janelas. Lembrava-se de todas aquelas histórias… Havia sempre alguém que tinha ouvido algo. Pessoas que, atraídas por um som, um chamado ou uma luz abriam a porta no meio da noite, enganadas pelo logro, deixando que espíritos penitentes lhes invadissem a casa e as matassem. «Deus deu-nos o sono para não cairmos na tentação de espreitar a noite», dizia-lhe a mãe. 

Joe não ligava muito às histórias dos velhos. Nem agora, que também era um. Decidiu-se, como tal, a abrir a porta, sentindo de imediato um vento frio como a morte a vergastá-lo. 

Joe tremeu, mas não cedeu. Era um velho duro. Frio. A vida no campo tinha-o tornado assim. 

Lá fora, chovia sem dar tréguas. Joe suspirou. Há duas semanas seguidas que choviam torrentes. Os campos estavam alagados e, por este caminho, todas as colheitas ficariam arruinadas.

Veio-lhe à mente uma vida de memórias tão cruéis quanto a vida lhe fora. Não gostava de se prender ao passado, mas não podia escapar-lhe. As memórias têm vida própria. Habitam dentro nós e nem sempre se importam connosco. 

O vento soprou com uma intensidade demoníaca, gritando na noite. A violência da rajada foi tal que a frágil luz da vela se apagou.

— Joe — ouviu chamar.

Ficou de olhos esbugalhados, pálido, um arrepio correndo-lhe pelas costas. O que poderia estar a chamá-lo daquele breu sem fim? Ainda por cima, debaixo daquela enxurrada de água onde ninguém deveria andar. As histórias que a mãe contava assaltaram-no novamente, e o medo tomou-lhe conta do corpo. Joe, petrificado, não teve coragem de responder. Não ousava desafiar o quer que fosse que clamava por ele.

— Joe — chamou uma voz feminina. 

Desta vez, afrontado pelo sobressalto, respondeu impulsivamente:

— Quem me chama? — Um suor frio percorreu-o.

— Sou eu.

Joe, por fim, reconheceu a voz.

— És tu, mulher? 

— Sim, quem havia de ser?

— Onde é que estás?

— Deitada, onde tenho estado — respondeu Josephine. — Porque é que não voltas para a cama? Ainda é de madrugada.

Joe, já sem a frágil luz da vela, tateou o caminho de volta ao quarto. Chegando à porta, e sem ver nada, falou na direção da cama: 

— Eras tu que me estavas a chamar agora?

— Sim, já te disse que era eu.

— Nem estava a conhecer a tua voz. Nem parecia vir daqui. Até parecia que me chamavas lá de fora, da noite.

— Que ideia, homem… Anda, volta para a cama.

Joe deitou-se e, ao cabo de alguns minutos, voltou a adormecer. 

Quando acordou, já o dia tinha nascido. A chuva dava finalmente tréguas. As bátegas caíam agora calma e compassadamente do telhado. O velho Joe, ainda deitado, olhou para o lado, mas Josephine já lá não estava. 

Levantou-se na esperança de que ela, como era hábito, se tivesse levantado primeiro. Procurou-a pela casa. Chamou-a e ninguém respondeu. Lembrou-se, então, de que ela poderia ter ido lá fora buscar lenha. 

A rua estava deserta, vazia de tinta, de um cinzento pobre e monótono. Gritou para o vazio da estepe. As palavras ecoaram várias vezes, até o som se deformar. Joe continuou a chamar pela mulher, mas onde quer que a procurasse apenas se ouvia a sua voz. O nome, de tanto se repetir, já não parecia fazer qualquer sentido. 

Sentou-se, prostrado, no banco da cozinha. Pegou numa moldura com a fotografia de uma mulher, nos seus quarentas, a sorrir. Tocou-a com carinho, como se o rosto se escondesse atrás do vidro. Algo o perturbou, então. A moldura escapou-se-lhe por entre as mãos trémulas, caindo com estrondo e estilhaçando o vidro em incontáveis pedaços, como se cada um deles uma memória de vida fosse. Foi quando se dobrou para apanhar a fotografia que se apercebeu de algo escrito no seu verso. Tentou lê-lo, mas tudo se resumia a uma dança de letras e números turvos. Colocou os óculos até que as letras, como bons soldados, ficaram estanques nas suas posições. Pôde assim, finalmente, ler: «Josephine. Querida por todos. Para sempre recordada. 1907-1956».


 

SOBRE O AUTOR

Luís Varela

Luís Varela, oriundo do Ribatejo, nasceu em 1996. Licenciado em Turismo pela Universidade de Évora, realizou posteriormente uma pós-graduação em Storytelling no IADE. É apaixonado por literatura, cinema, história, música, fotografia e um sem-fim de outras coisas. Mais curioso do que gato, mas igualmente notívago, faz da noite o seu atelier. Em 2022, publicou o seu primeiro conto, integrando uma antologia de contos, intitulada Nem Sempre os Pinheiros São Verdes II, da editora Poética Edições.