O Furo

de Vanessa Barroca dos Reis

 

Quão azarada tem uma pessoa de ser para ter um furo a meio da noite, numa estrada secundária, com uma barra de rede no telemóvel que aparece e desaparece, em caprichos intermitentes?

Contar já estar em casa. Ligar as luzes de emergência. Pôr o triângulo uns metros atrás do carro. Vestir o colete reflector, entre suspiros audíveis na noite quieta.

Quão sortuda tem uma pessoa de ser para resistir ao desalento inicial, arregaçar as mangas e, sem soltar uma asneira (muito feia), iniciar o rodar e soltar de porcas, confiando mais no uso do peso do corpo e menos na força, e de a coisa começar a correr bem, e um pequeno sorriso começar a aparecer enquanto a chave em cruz gira e gira e gira?

Lá ao longe, na estrada deserta há minutos, surgem luzes, e um carro aproxima-se e vai diminuindo a distância, e depois a velocidade.

Imagine-se o que pensa o alegado samaritano que sai do carro e vê a mulher frente a um pneu já quase solto, as pernas em collants brilhantes num ângulo agradável de se ver. Os dentes arreganhados num sorriso largo. A satisfação quando se apercebe de que não vai ter de sujar as mãos, mas vai colher qualquer coisa só por ter parado no meio daquele nada. Um sorriso cheio de dentes lembra um predador…

***

 

A mulher abre o porta-bagagens e arruma o pneu furado, o macaco e a chave de porcas sob o fundo falso. Faz uma nota mental para limpar as ferramentas com lixívia e passar um pano por todo o porta-bagagens. Ainda de luvas, arrasta o corpo do samaritano para o interior da berma, o cabelo claro agora salpicado de manchas escuras à luz da Lua, o olho direito demasiado saliente na massa de tecido danificado e ossatura fracturada.

Todos estes anos passados, a mulher ainda espera… Espera ser descoberta ou sentir-se culpada. Ainda não acontecera.

 

*Este texto foi redigido segundo o Acordo Ortográfico de 1945

SOBRE A AUTORA

Vanessa Barroca dos Reis

Vanessa Barroca dos Reis nasceu em Lisboa e cresceu na Amadora, rodeada de livros, filmes, música e videojogos. Na adolescência, começou por escrever contos de terror, de mistério e poemas. Alistou-se aos 18 anos na Força Aérea, onde serviu uma década. É licenciada em Direito e tem uma pós-graduação em Edição. Mantém os blogues bué de livros e bué de fitas desde 2010. O seu conto «Ritos» integrou a antologia Sangue Novo (2021), que reuniu quinze novos autores portugueses e ganhou o Grande Prémio Adamastor de Literatura Fantástica Portuguesa de 2022. O seu conto «Sob a Névoa» integrou a antologia Sangue (2022). Vive com o marido na região francesa da Alsácia desde 2015.