O Gato da Vizinha

(ou Azares e Más Horas)

de Marta Nazaré

 

Sexta-feira, 31 de outubro de 2036, às 13h31

Era sempre às sextas-feiras que lhe entregavam os projetos. Desta vez, Vasco teria até ao fim do ano para traduzir 330 páginas do livro mais aguardado do momento. Inferno Infernal tinha um enredo de cordel. Era uma espécie de literatura cor-de-rosa de terror em que uma «maldição maldita» impedia uma diaba escrava e um anjo fidalgo de consumarem o seu amor. E, no fim do livro, o leitor percebia que a história era um sonho do narrador. A revirar os olhos, o tradutor maldisse a sua sorte, mas a pressão das contas por pagar em cima da mesa não lhe permitia ser picuinhas.

Antes de pôr mãos à obra, Vasco foi à mercearia abastecer-se, evitando a todo o custo cruzar-se com o gato branco e preto da vizinha do 2.º B. Na última reunião de condóminos, lembrava-se de ouvir a Dona Ana contar que «o lado branco» do gato passara por ela antes de comprar a raspadinha premiada. O Sr. João, que não fora bafejado pela mesma sorte, culpava «o lado negro» do felino pelo pé torcido nos degraus da escada. Vasco não podia arriscar.

De regresso a casa, sentado à secretária, o tradutor deu início à provação. Em poucas semanas, já tinha desgraçado a tecla Enter com o incessante martelar. Decorrido um mês, conseguiu, através de técnicas rudimentares, que a tendinite e as dores nas costas não lhe prejudicassem muito o desempenho, mas mais difícil de remediar foi ter gravado acidentalmente a versão antiga do ficheiro em cima da que levara um dia a rever. Já a ver desfocado, culpou as Testemunhas de Jeová, sempre a interrompê-lo. Não lhe largavam a porta, querendo salvá-lo da condenação eterna. Mal sabiam elas que condenado ao Inferno já estava ele.

 

Quarta-feira, 31 de dezembro de 2036, às 23h32

Várias atualizações inoportunas do Windows e uns azares menores depois, mais morto do que vivo, Vasco concluiu a famigerada tradução antes da Passagem de Ano. Redigiu o e-mail e enviou-o. Preparava-se para desligar o computador quando percebeu que se esquecera de anexar o ficheiro. Praguejou.

Na segunda tentativa de e-mail, confirmou também que enviava a versão certa, não fosse o Diabo tecê-las. Tudo em ordem. Iniciou a contagem decrescente para o novo ano e o fim do martírio. Inferno Infernal até nunca mais. Movimentou o cursor para carregar em «Enviar» quando o ecrã do computador ficou azul. Do outro lado da janela, «o lado negro» do gato roçava-se nas escadas de acesso ao telhado.

 

SOBRE A AUTORA

Marta Nazaré

Nascida em 1981, formou-se em LLM-I/A e Tradução. Quando não está a escrever contos, traduz livros infantojuvenis e legenda filmes e séries.

Estreou-se como autora na antologia Sangue Novo.

Temos a certeza de que já foi monstro numa outra vida, mas daqueles fofinhos que decidem contrariar estereótipos e mostrar que estas criaturas (também) têm bom coração. É com ela que contamos para saber tudo sobre o error infantojuvenil.