O Homem Retrato

De João Esteves

 

I


Clique! Disparo! Uma explosão de luz, seguida de outra e de outra. Antero olhou para o fotómetro da máquina digital. Tinha seleccionado o modo de exposição Av – Prioridade à Abertura, com o valor f/ fixado em f/8. A velocidade de obturação era de 1/50 e o ISO definido era 100.
Sem flash! Tem de ser sem flash! Clique, clique, disparos sucessivos numa tarde quase ida e a anunciar o equinócio de Outono. Antero movia-se com fulgor, gritava, encenava expressões faciais inusitadas, de alguém à deriva, em descontrolo emocional. Convulso, quase derrubou o tripé enquanto se posicionava perante a objectiva para outra sucessão de poses. O suor escorria-lhe pelo corpo. Antero, no entanto, não fazia tenções de abrandar. Seria forçado a fazê-lo muito em breve, quando sucumbisse à exaustão. Além disso, desde que iniciara estas séries de auto-retratos sentia-se… esquisito. Parecia estar a passar por algum processo de mudança. Algo que tinha de capturar.

Minutos mais tarde, estava caído no soalho. Sentia que o seu próprio corpo se virava contra si. Ao seu lado, estava um livro de fotografias de Jorge Molder, cujos auto-retratos a preto e branco Antero aparentava mimetizar. Tentou alcançar o livro com uma mão, mas a fadiga era tal que só pensava em fechar os olhos.

 

[As paredes dobram-se e abeiram-se do corpo caído.]

 

Uma contração muscular violenta fê-lo cuspir a pouca saliva que ainda tinha na boca. Estava desidratado, mas tinha de continuar, não podia desistir agora. Só conseguia pensar na apresentação do projecto final do curso de fotografia e em como a sua série de auto-retratos impressionaria tanta gente: colegas, formadores, fotógrafos, curadores de exposições, quiçá, o próprio Jorge Molder. 

Gatinhou até à cozinha e conseguiu alcançar uma garrafa de água. Decidiu que a próxima série de fotografias se iria focar no rosto, para poupar alguma energia. Faria grandes planos ora do lado direito ora do esquerdo, mas nunca de ambos, como se a face ocultada estivesse a desaparecer… De seguida, faria outra sequência de corpo inteiro, que iria depois comparar com esta. No final, escolheria as melhores fotografias de cada série.

Assim, activou o auto-temporizador da máquina, seleccionou o número de disparos contínuos e pressionou o botão do obturador. Ao firmar-se para a primeira fotografia, notou que estava a tremer. A máquina parecia agora impor-se diante de si. Teria elevado o tripé em demasia? Sentiu-se diante de um monstro mitológico composto por fibras e metal. Olhos muito abertos, olhos fechados. Uma gargalhada, as mãos a repuxar a pele da cara, os dentes cravados na carne dos lábios. Aterrorizado, espantado, sofrido. Sim, é isto mesmo, sim! 

No final, com o coração ainda em fúria, apercebeu-se de que tinha a roupa interior ensopada em urina. Deslocou-se em esforço até à casa de banho. Quando olhou para o seu reflexo no espelho, não quis acreditar no que viu. 

 

II

 

Alguns dias depois, numa das salas na cave do Instituto de Fotografia, um grupo aguardava em pé, em redor de uma mesa ao centro da sala. À entrada, o formador chupava o que restava de um cigarro. Parecia estar desassossegado. 

— Bem, acho que está na altura de começarmos a sessão — disse prontamente, ao entrar na sala. — Estou a ver que quase todos vieram, o que é bom. Como sabem, hoje vamos discutir os trabalhos finais de alguns colegas, que vão apresentar as suas fotografias à turma. Depois, vai haver uma breve discussão acerca dos trabalhos e, no fim, a minha apreciação. Vamos começar pelo [pausa para tossir] projecto intitulado… Fading Slowly, Desapareço.

Uma figura surgiu de um dos cantos menos iluminados. Trajava uma camisa preta, calças pretas e um chapéu Borsalino. Os olhos escondiam-se atrás de óculos escuros. Apoiado numa bengala, mancou com dificuldade em direcção ao grupo. Era Antero.

— Este tipo só pode estar a gozar — rumorejou uma colega de turma.

— Antes de começar, gostava de vos pedir autorização para fotografar a minha apresentação. Todas as fotografias vão ser para uso pessoal. 

Ninguém expressou oposição perante a ideia. Todos, inclusive o formador, deram anuência. Antero iniciou, então, a sua apresentação. Pressionou o botão do obturador e colocou as fotografias em cima da mesa, numa sequência aparentemente lógica. Imersos na análise das imagens, os colegas de curso partilhavam opiniões.

Antero, aparentemente satisfeito, tomou a voz. Em simultâneo, um disparo. Seguido de outro. Uma explosão de luz. Outra. E outra. 

— Molder e a ideia de desfasamento identitário… — dizia, tentando descrever as fotografias. Mas a voz soava cada vez mais distante, e o corpo parecia desvanecer-se…

— Olhem! O que é que se passa com ele?! 

A turma estava agora em suspenso. Entre frases inacabadas e murmúrios, sabe-se que as últimas palavras de Antero ainda aludiram a uma letra de Moonspell: “You can disappear here without knowing it”.

Houve um disparo final. Uma derradeira tempestade de luz fria. Depois, nenhum movimento, nenhum som: nenhum ponto de interrogação, ditongo ou grito. Todas as pessoas naquela sala escura do Instituto permaneceram incrédulas. O que estavam a sentir ultrapassava o significado do medo; era superior, indizível. Foi assim que Antero passou deste mundo para outro, fading slowly, a desaparecer.

 

*Este texto foi escrito segundo o Acordo Ortográfico de 1945


SOBRE O AUTOR

João Esteves

João Esteves (Lisboa, 1984) cursou Sociologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Crente na ciência, mas também no sonho e no fantástico, desde cedo buscou refúgio e consolo nos livros. Completou o curso de Iniciação à Fotografia no Instituto Português de Fotografia, em Lisboa.