O Homem sem Pernas

de Patrícia Sá

Dizia-se, naquela aldeia, que o espectro de um homem sem pernas vagueava envolto numa capa negra. O espectro tinha, em vida, sido um homem, cujo o tempo apagou o nome, mas não a história que lhe viria a dar fama além da morte: a queda de um tronco de uma árvore que o incapacitara da cintura para baixo. Quando deixou o plano mortal, lançou uma maldição: todos os que o vissem sofreriam o mesmo destino.

Valdemar Meireles não era homem de crenças nem superstições; era demasiado rico e atarefado para balelas dessas. Vivia na aldeia, na casa do seu velho pai, pois considerava-a o sítio mais afastado da sociedade, onde podia passar os dias envolto nas contas da empresa e no silêncio do campo.

O único problema, realmente, eram essas superstições que os vizinhos insistiam em trazer à baila sempre o viam. Sim, seria preciso deitar abaixo umas quantas árvores para criar uma nova unidade da empresa, mas que tinha essa historieta do homem sem pernas que ver com isso? Ambientalistas enraiveciam-no, como quase tudo o resto.

— Olhe que um dia ainda vai ter uma visitinha — dizia a Dona Lurdes.

Valdemar orgulhava-se do controlo que tinha sobre todos os aspetos da sua vida. Só que todo o controlo sofre abanões e acaba por cair ao mínimo sopro, como um castelo de cartas.

Tal aconteceu certa noite. Estava Valdemar a preparar o chá que bebia sempre antes de dormir, quando viu uma figura no centro da sala. Na aldeia, era costume invadir-se a casa uns dos outros, mas isso nunca acontecia a Valdemar. Foi direto ao indivíduo para lhe cuspir uma torrente de insultos, mas deteve-se. O homem era pálido ao ponto de ser transparente e flutuava dentro de um sobretudo negro. A cintura era feita de estilhaços que se iam dispersando ao longo do espaço que as pernas deveriam ocupar, até se desfazerem em nada.

O vulto não disse uma palavra. Apontou o indicador de celofane na direção de Valdemar e desapareceu, como se tivesse sido sugado para dentro do ar.

Claro que Valdemar pensou, inicialmente, que se tivesse tratado de uma alucinação. No entanto, com o passar dos dias, perdeu a sensibilidade nas pernas e começou a cair nos sítios mais improváveis.

Pensou que a situação pudesse ser temporária, tendo provavelmente sido fruto do avançar da idade, mas, para seu espanto e pânico, piorou: tinham-lhe começado, também, a cair os dedos dos pés! Primeiro, enegreceram, adquirindo um aspeto apodrecido, e, poucas horas depois, desintegraram-se diante dos seus olhos como grãos de areia. Os tornozelos foram os próximos; a eles, seguiram-se as pernas e, finalmente, as coxas.

Valdemar estava desesperado. Não podia ligar a médicos, pois o que diria? Quem acreditaria em tal fenómeno? Tudo aquilo era surreal.

Foi então que contactou a Dona Lurdes, que entrou em sua casa com um olhar triunfante e um sorriso irónico. Foi por isso que não acreditou nas palavras dela, de que conseguia ver-lhe as pernas.

— Mas é verdade, Sr. Valdemar! Estão iguaizinhas à última vez que as vi!

A irritante mulher estava a divertir-se com a situação. Portanto, Valdemar fez algo impensável: falou com outros vizinhos. Todos lhe deram a mesma resposta: as pernas continuavam ali, visíveis e palpáveis — um dos vizinhos até lhe deu uma palmada no sítio onde, antes, estava a coxa, e Valdemar olhava, com olhos esbugalhados, a mão do homem sobre o vazio, com a firmeza de quem se apoia num objeto com substância.

Foi assim que a casa de Valdemar Meireles se transformou na morada da agonia. O homem chorava incansavelmente, tentando agarrar as pernas que não via nem sentia, como um homem que se afoga em alto mar. Todos os dias se ouviam os seus gritos, aos quais ninguém ficava indiferente. O implacável Sr. Meireles tinha-se convertido num pobre diabo, aprisionado pela loucura.

Entretanto, entre as azinheiras, flutuava um vulto sem pernas, com pele de celofane e uma capa negra.

 

SOBRE A AUTORA

Patrícia Sá

Patrícia Sá nasceu em 1999. Desde muito cedo que encontrou um refúgio na escrita e estreou-se como autora em 2021, com o conto «Amor», na antologia Sangue Novo. Interessa-se especialmente pelo estudo da monstruosidade na literatura, nas artes e na cultura. Está determinada a provar que o terror é um género sólido. A arma dela? Resmas de livros teóricos sobre o assunto. Sublinhados. E com post-its.