O Horto do Morto
De Marcos D. Mateus
Em vão cuidava o morto do seu horto, um pequeno talhão cercado por um muro de pedra no cimo da colina, ensombrado por um grande salgueiro de ramos esmorecidos, com uma folhagem tristonha que pendia até chegar a poucos palmos do chão.
Do alto do cerro, o morto olhava o casario disperso da aldeia e, desalentado, via nos quintais irromper hortaliças e ervas, assim como árvores que cresciam carregadas de frutos sumarentos. Por vezes, sentia até uma lágrima descer pela face impalpável, ao contemplar a tenacidade das flores que despontavam aqui e ali na terra fértil das leiras, e por entre as pedras dos muros que as seguravam.
O voo das borboletas e o chilrear dos pássaros encontravam repouso e palco nesses campos, mas não no seu horto. Ali, não havia cor nem cantar, apenas os tons esbatidos da terra, a sombra cinzenta do salgueiro e o cicio do vento a sussurrar nas folhas, apenas rompido pelo repique do sino da igreja, que amiúde anunciava quem dali partia.
O horto do morto era um recanto desbotado, esquecido, apagado do tempo e da memória. Ninguém olhava para ele, por não o querer ver, ou por não saber que ali estava. Nem mesmo os catraios lá iam nas suas brincadeiras tolas. Na orla da aldeia, o morto via o seu horto como um lugar desprezado, à margem do rio dos vivos.
De tudo tentou o morto plantar no seu horto: sementes grandes e pequenas, de toda a variedade e espécie. Esperou dias, semanas, anos, porventura décadas, mas nada lá cresceu. Até que, num dia igual a tantos outros, viu passar além dos muros um pequeno cortejo escuro, rumo à capela no alto da colina. Através dos vidros da carruagem, puxada por cavalos negros, distinguiu um vulto, inerte e rugoso, como uma semente pronta a ser lançada à terra.
O morto sentiu a face translúcida estender-se com um sorriso. Olhou para o seu horto, e de novo para o cortejo, e pensou que, se nenhuma semente ali germinava e irrompia do solo para rumar à luz do céu, talvez aquela que ali passava crescesse em direção à escuridão da terra. Nesse mesmo dia, assim que o crepúsculo chegou e a aldeia se aquietou, o morto exumou a semente e trouxe-a para o seu talhão, onde a pousou com extremo cuidado sobre o solo vazio. Depois, pacientemente, esperou.
Não tardou até que bolores e fungos brotassem em torno dela, para deleite do morto. A isso vieram juntar-se as minhocas frenéticas a remexerem os grãos de terra, e os escaravelhos, besouros e outros bichinhos que, alegres, laboravam em torno da semente, à medida que ela germinava. Embalado pela melodia do grasnar de corvos, cuja plumagem negra se diluía na sombra do salgueiro, o morto admirava o seu cultivo, até só restarem linhas brancas endurecidas sob o solo, que só o tempo dissolvia.
Outrora árido e taciturno, o horto tornou-se fecundo, e o morto não mais olhou com desgosto para os quintais da aldeia. Enquanto havia vivos para deles cuidar, bastava-lhe esperar pelo clamor metálico que os despedia, para então, com um sorriso, reclamar uma nova semente. Assim, no compasso do sino, passou a plantar no seu horto as sementes que iam sendo abandonadas no cemitério da aldeia, fazendo daquilo que os vivos entregavam à terra em pranto uma sementeira de alegria.
O tempo passou, e o morto, distraído com a primavera eterna que parecia tomar conta do seu horto, não percebeu que as sementes iam escasseando, que os outros quintais, um a um, perdiam folhas e flores, que as casas se calavam e as ruas se esvaziavam, até nada restar da aldeia senão muros caídos e portas cerradas.
*
O solo do horto, terra negra raiada de branco, ainda jaz à sombra do salgueiro, num talhão esquecido na colina ventosa, entre o casario decrépito de um lugar abandonado. Nele, espera triste o seu morto que a vida germine de novo na aldeia, e as suas sementes lhe devolvam a felicidade de voltar a ver o seu quintal a florescer.
SOBRE O AUTOR
Marcos D. Mateus
Nascido no Norte, a meio caminho entre as décadas de 70 e 80, começou a viajar ao passado em pequeno, levado pelas histórias que ouvia dos avós. Foi com eles que descobriu o interesse pela escrita. Atualmente, é cientista e professor no Instituto Superior Técnico. Sente-se, acima de tudo, um homem de família.







