O Jogo ou O Dia em Que Perdi a Minha Irmã

de Raquel Fontão

 

Um.

Dois.

Risinhos.

Três. Aqui vamos nós!

A mãe empurra com força as costas pequenas. Ela avança, meio atarantada, de olhos vendados, aos tropeções pela areia. Mesmo assim, coloca as mãos frente ao lenço florido com medo de que não seja suficiente, de que esteja a fazer batota. A minha irmã é assim. Nunca foi batoteira.

Ainda estamos na praia. A brisa é forte. O cheiro a maresia enjoa-me. Franzo o nariz e meto as mãos nos bolsos. Aperto as conchas que apanhámos na orla do mar durante a tarde. Eu e a mãe. É bom tê-las assim, e aperto-as com tanta força que as sinto a furar a pele. Rio-me baixinho do meu segredo. O Sol já se pôs. Ou está quase a pôr-se. A mãe sempre me ensinou que, quando o mar fica laranja, é porque o dia está a terminar. Lá em cima, as estrelas vão aparecendo. É quase de noite.

A Pilar vai esticando os braços em volta enquanto avança na areia molhada. Dá risadas ao rodopiar. Eu puxo o braço da mãe. Quero perguntar-lhe quando chega a minha vez de jogar, mas também quero saber quando vamos para casa. Estou cansado. Ela olha em frente, sem responder. Parece vazia, hoje. A Pilar continua à procura dos nossos corpos, as mãos esticadas apalpam o ar, adivinham o espaço. Mas ela está longe. Cada vez mais longe. Não faz mal. Acho que está feliz e fico contente por isso. Acho que é a primeira vez que ela tem os olhos vendados. E é a primeira vez que a ouço rir. Mas não tenho a certeza. Só tenho seis anos, e ela também.

De repente, tropeça no castelo de areia que construí de tarde com ajuda da mãe. Fico furioso. Era um bom castelo. Uma lágrima desce-me pelo rosto e faço beicinho, mas a mãe não está a olhar, por isso, recomponho-me. Ela não gosta nada de me ver triste. O que é muito injusto. Se a Pilar chorar, ela não se aborrece.

O céu está mais escuro e há mais estrelas agora. Amuado, tento contá-las. Uma, duas, três… As gargalhadas da minha irmã interrompem-me. Não vale a pena. Bocejo, cansado do calor do dia preso no meu corpo, e estremeço um bocadinho. Chego-me mais para junto da minha mãe.

Ela olha para mim, então. Não sorri. Agora que penso nisso, não sorriu a tarde toda. E a mãe está sempre feliz. Menos quando está sozinha com a Pilar. Eu já a vi. A olhar para ela com um ar triste. Triste não, zangada. Como se ela tivesse culpa de alguma coisa. Não sei porquê, a minha irmã até se porta bem. Penso nela nas fotografias — onde eu apareço, onde consigo contar todos os meus dentes ou de vez em quando ver a minha língua de fora. Mas o rosto da Pilar, ou grande parte dele, está sempre escondido. Debaixo de uma manta ou no ombro do pai ou atrás de mim. Nunca ao colo da mãe.

Hoje, a mãe parece distante. Puxa-me para ela, num abraço, e começa a caminhar para trás e ligeiramente de lado, como os caranguejos. Com o meu corpo colado ao dela. Agora, sou eu que me rio, é divertido andar para trás. Mas ela tapa-me a boca. Tem razão. A minha irmã pode ouvir-nos e ganhar o jogo.

Ela nunca ganha.

É difícil caminhar assim. Se calhar, já não gosto muito deste jogo. Estou cansado. É chato. A Pilar, agora, é só um pontinho no meio da praia. As ondas estão mais fortes. A mãe também me ensinou que, quando a noite chega, elas saltam alegres. Por isso é que são maiores como cavalos gigantes, a galopar pela areia fria.

Já não vejo a minha irmã. Mas ainda a ouço, mesmo de costas. Ouço as gargalhadas dela enquanto a mãe me calça os chinelos escondidos debaixo do passadiço. Ouço-a ao arrastar as solas cheias de areia na madeira gasta, a saltar as traves soltas e os buracos já comidos pelo tempo. Ouço-a quando entro no carro, e a mãe me coloca o cinto com cuidado e me dá um beijo na testa. Ouço-a quando liga o motor e arranca, muito concentrada, com o olhar perdido em frente. A mãe fecha os vidros, e eu deixo de ouvir as ondas do mar a rebentarem, furiosas. Mas a ela, à Pilar, ainda a ouço.

Lá atrás.

Muito lá atrás.

Cada vez mais longe.

SOBRE A AUTORA

Raquel Fontão

Raquel Fontão nasceu em Vila Nova de Gaia, Portugal.

Entrelaçou, desde cedo, os universos da música e da escrita. Estudou saxofone na ESMAE e licenciou-se como professora do ensino básico, com variante de educação musical na ESEP.

Atualmente, trabalha como professora de música e adora escrever todos os dias, transfigurando harmonias em texto. A sua predileção pelo modo menor faz com que o género de terror seja o seu preferido, perseguindo, com gosto, os monstros que a habitam.

Vive no Porto com o seu marido, filhas e as suas duas galinhas.

 

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