O Ladrão

De Marcos D. Mateus

 

— Tudo o que vem a ser merece morrer miseravelmente — alvitrou Mefistófeles.

Fausto, no entanto, determinado a trocar a alma por uma vida de prazer, ignorou o juízo infesto do Ladrão.

 

* * *

 

O Braga tinha apenas a quarta classe e nunca lera Goethe. Como tal, desconhecia Fausto e o seu pacto. Sabia, ainda assim, quem era o Ladrão, pois desde os tempos da catequese que este o esperava à porta da igreja para lhe segredar as mesmas promessas traiçoeiras.

Cresceu a amaldiçoar o pai que lhe batia, a invejar os vizinhos mais abastados e a odiar os céus e os seus embaixadores. De alma ao abandono, sempre viveu na esperança de que ela fosse roubada, o que acabou por acontecer pouco depois de se casar, ao ganhar o Totobola e se fazer rico da noite para o dia. Mas como podia um homem daquela laia acertar nas treze apostas? Teria feito um pacto com o Diabo, dissera o povo que o detestava, suspeita partilhada pela mulher, que dele já levava porrada com fartura.

O Braga abandonou a fadiga sob o sol abrasador do Alentejo e mergulhou nos dias frescos das tabernas, afogando-se em vinho até vomitar pancadaria. Envolto em mistérios, comprou um talhão em solo sagrado, de onde fez crescer o único jazigo do cemitério de Barbacena, para que na eternidade os seus ossos estivessem acima dos do povo, gente boa e temente a Deus. Além disso, adotou o hábito de se isolar num monte distante por meses a fio, retornando sempre com sapatos novos e uma esposa cada vez mais envelhecida.

«Olha que eu chamo o Braga!», ouvia-se amiúde na aldeia, onde o seu nome se tornara um motejo para assustar as crianças. Teria sido essa a única memória do pelintra, não fosse a sua mãe decrépita ter morrido certo dia, e a sua mulher ter recusado acompanhá-lo ao funeral, para não ter de olhar para o mausoléu que ele erguera.

— Gasta dinheiro naquela merda para quando estiver morto e não gasta em comida para mim, que ainda estou viva — comentou à vizinha, para a desgraçada logo a seguir o cantar aos ouvidos do Braga, seu amante.

Mais tarde, nesse mesmo dia, enquanto despia as vestes fúnebres no quarto, o Ladrão sussurrou-lhe:

— Castiga essa cabra.

— Desta vez, vai ver como elas são — respondeu-lhe o Braga entredentes, tendo então chamado a mulher com um berro, adensado pelo fogo que lhe incendiava a pele por dentro.

— Apanha-me o botão da camisa que caiu! — ordenou-lhe, assim que ela se apresentou.

A mulher, submissa, não reparou sequer que o Braga segurava uma machada. Assim que ela se baixou à procura da mentira, recebeu um golpe oblíquo no pescoço que a matou numa fração de segundos, não sem antes tingir de carmesim tudo à sua volta.

O homem passou o resto do dia a eliminar o testemunho do seu pecado, esfregando o chão e raspando as paredes. Dando-se por satisfeito, enfeitou a mulher com uma roupa imaculada e reclinou-a na cama, de modo a parecer que lhe dera um quebranto.

A cabeça, porém, teimava em pender, ora para a frente, ora para os lados, presa pelos tendões que a machada falhara em decepar. Engenhoso, o Braga resolveu o contratempo enterrando metade de um prego comprido junto aos ossos da coluna, contra o qual pressionou depois a cabeça. Tendo unido o rasgo que desarticulava o cadáver, só lhe restou ocultar o lenho com o lenço que ela usava ao pescoço quando ia à missa.

Vendo-a serena e aperaltada, qual defunto ataviado no caixão, o filho da puta foi então à aldeia chamar o delegado de saúde, a quem disse que a mulher morrera do coração, talvez até de desgosto, enquanto ele estivera a enterrar a mãe.

 

* * *

 

Encurralado pelas paredes eivadas da cadeia em Évora, o Braga sentiu-se atraiçoado pelo destino. Sabia que dali não sairia em vida, e que, na morte, ninguém lhe reclamaria o corpo para o depositar no jazigo ao lado da mulher. Ainda assim, não sentia remorsos por ter dado cabo dela, nem pelas vezes que a manteve presa no monte até ela parir, para depois matar os filhos e os enterrar debaixo do soalho da casa, dentro de uma caixa de sapatos.

Com o futuro roubado, só lhe restava pôr fim ao presente, tendo para isso à mão tudo aquilo de que precisava: a mortalha amarelada que envolvia o colchão, o banco tosco a um canto, e uma conduta que atravessava a jaula junto ao teto.

Não é tarde nem é cedo, pensou, alcançando o banco para o reposicionar no meio da cela. Depois, elevou-se nele, rodeou o cano com o lençol até só pender uma tira, e fez um laço com o tecido. Para finalizar o arranjo, ajustou a gola tosca ao pescoço e, sem vacilar, empurrou o banco para trás.

O cano abaulou sob o peso, e um baque metálico ecoou pelo presídio.

— Foda-se… — grunhiu, por não lhe calhar a morte rápida que dava aos coelhos ao partir-lhes o pescoço. Em vez disso, viu-se suspenso a centímetros do solo, com o gasganete espremido por mãos invisíveis, que talvez fossem do Ladrão que tanto lhe prometera, e que, depois de lhe roubar tudo, vinha finalmente reclamar-lhe a alma.

Morria assim aos poucos, arranhando a garganta até dos braços se escoar a força e estes penderem desmaiados.

Um alívio momentâneo avivou-o, no entanto, depois de o cano, num estalido ruidoso, voltar a ceder. Um pé roçava agora o chão, aligeirando a morte lenta que lhe encolhia o pescoço. Ainda ouviu ao longe os dentes de uma chave morder o ferrolho, mas desfaleceu na esperança de um socorro, sendo visitado por uma memória de quando era ainda pequeno e inocente. Estava na missa, de olhos presos no crucificado, enquanto o padre lia dos Evangelhos as suas palavras:

«O Ladrão não vem senão para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida. E a tenham em abundância.»

SOBRE O AUTOR

Marcos D. Mateus

Nascido no Norte, a meio caminho entre as décadas de 70 e 80, começou a viajar ao passado em pequeno, levado pelas histórias que ouvia dos avós. Foi com eles que descobriu o interesse pela escrita. Atualmente, é cientista e professor no Instituto Superior Técnico. Sente-se, acima de tudo, um homem de família.