O Médico

de Álvaro Oliveira

 

Quando entrou no consultório, o brilho ofuscou-lhe os olhos. Era modesto, pouco espaçoso, como qualquer outro que já tivesse frequentado. Teria de chegar.

Por mais que insistisse na natureza da emergência, foi instruído pela rececionista para esperar um pouco. Tinha pessoas à frente. Resignado, sentou-se numa das poucas cadeiras disponíveis.

À direita, encontrava-se o consultório propriamente dito, apenas um cubículo com a porta entreaberta, o suficiente para que o homem conseguisse ouvir o que se dizia no interior.

— Tenho sentido algumas palpitações estranhas, doutor — proferia uma voz feminina.

— Ora, deixe-me auscultá-la para ver o que se passa — respondeu o médico, que, após alguns segundos, tornou a falar. — Não é nada de preocupante, fique descansada. Parece ter indícios de felicidade, uma doença muito chata, mas curável. Vou receitar-lhe estes comprimidos. — Ouviu-se a caneta a rabiscar num bloco. — É para tomar de 8 em 8. Se os sintomas continuarem, por favor volte cá.

A senhora saiu do consultório com a receita na mão, agradecendo ao médico.

O homem estranhou a consulta, mas nada inferiu. Precisava de ajuda e não havia outro lugar onde a obter, pelo que esperou a sua vez. Já começava a manchar a cadeira de vermelho, mas havia outro homem à sua frente.

— Bom dia, doutor — cumprimentou este. — Vim aqui porque tenho tido algumas náuseas, tonturas… Será algum síndrome vertiginoso?

— Bom, deixe-me ver como estão os ouvidos… Parece tudo bem. Olhe para cima… Agora para baixo… Está tudo em ordem. O que pode existir aqui é um caso ligeiro de esperança. Esteve em contacto com alguém infetado? Nunca se esqueça das medidas preventivas. Para tratar, felizmente, é muito simples. Vá descansar, procure repousar o máximo possível. Quando se for deitar, é só repetir estas palavras: «A minha vida é inútil. Todo eu sou inútil. Sou tão inútil como o pó que as minhas botas calcorreiam, como a gota da chuva que serpenteia pela janela, antes de evaporar e desaparecer para sempre. Tudo o que faço é inútil, e a inutilidade permeia-me como a pele me cobre o corpo. Eu sou inútil». Vai ver que recupera num instante.

O paciente saiu do consultório e, para espanto do homem, também agradeceu ao médico. Nada daquilo fazia sentido… Mas chegara a sua vez.

Ao caminhar custosamente em direção ao consultório, deu por si a suar. Estava mais quente ali, tinha certeza, como se tivessem aumentado a temperatura.

Abriu a porta. Um médico como qualquer outro estendeu-lhe a mão.

— Como está? O que é que o traz por cá hoje?

O homem não estendeu a mão de volta. Continuava a pensar nas conversas que ouvira.

— Que tipo de médico é você? Olhe que eu quero ser atendido por alguém decente! Não é por nenhum maluco!

O médico sorriu. 

— Está no seu direito de procurar outro médico, se bem que lhe desejo boa sorte em encontrar outro por estas bandas.

O homem hesitou, mas pensou que era melhor sujeitar-se àquilo do que sair como tinha entrado.

— Ouça — começou o homem. — Eu estive num acidente. Por favor… Se for realmente médico, eu preciso de ajuda.

O médico examinou-o de alto a baixo num relance.

— Sim, é claro pelas escoriações, contusões e hemorragias. Mas não posso fazer nada por si.

— O quê?! Porquê?! — Uma gota de suor caiu pela testa do homem. O calor parecia ainda maior ali dentro.

— Neste momento, tenho outros pacientes para atender. Além de que não tenho aqui o material necessário. Lamento muito.

— Tenho pena das pessoas que for atender — cuspiu o homem, preparando-se para sair.

— Pois… Já eu não sei de quem tenho mais pena. Se da sua mulher, prestes a sofrer o divórcio pela traição que você lhe fez, se da pobre coitada que atropelou antes de embater contra a árvore.

O homem ficou boquiaberto.

— Mas — continuou o médico, bem-disposto —, como hoje me sinto generoso, vou colocá-lo em contacto com alguém que talvez o possa ajudar. Ele já tem alguma prática com este tipo de casos. — Pegou no telemóvel, marcou um número, e entregou-lho para a mão. — Já está a chamar.

— O que… — gaguejou o homem, sem saber o que fazer.

— É simples. Só tem de pedir perdão.

O homem olhou para ele estarrecido, de telemóvel na mão, com a chamada ainda a conectar. O calor era insuportável.

— Peça-Lhe perdão pelo que fez — indicou o médico, agora sério.

— N… Não — engoliu o homem, ainda confuso.

O médico sorriu e encolheu os ombros, como se já não fosse nada com ele. 

O homem sentiu uma tontura provocada pelo calor. Foi forçado a fechar os olhos.

Quando os abriu, acordou para um inferno. O carro embatera num pinheiro, e uma faísca bastou para que um incêndio se espalhasse à sua volta, tal era o calor do verão.

Ferido e sem saída, e com o fogo já a devorar o interior do automóvel, o homem não tinha escolha.

Fechou novamente os olhos e pediu perdão.


SOBRE O AUTOR

Fábrica do Terror